No Intenso Agora, a ressaca da revolução


Novo documentário de João Moreira Salles, primeiro depois de Santiago, No Intenso Agora se constrói a partir de três eixos:

1) O material filmado pela mãe do diretor, em uma viagem à China em 1966.

2) Imagens de filmes e arquivos da repressão à Primavera de Praga pelas forças soviéticas, em 1968

3) Imagens e filmes sobre o maio de 1968 francês. Além disso, imagens sobre passeatas e a repressão policial na ditadura brasileira, também em 1968,em especial as do enterro do estudante Edson Luis Souto, morto pela repressão.

A voz over do diretor comenta as imagens ao longo das 2h07 do longa-metragem. A montagem do material é de Eduardo Escorel, a partir de mais de cinco horas de imagens, conforme depoimento do diretor.

As imagens da China são domésticas, amadoras. Porém, em muitas delas há um frescor, uma espontaneidade que não escapa ao diretor. E nem a nós, que vemos o filme. Paralelamente às filmagens, a mãe, que fazia parte de uma comitiva em visita ao país de Mao, manteve um diário. Escrevia suas impressões. Maravilhava-se de que tudo fosse tão diferente do que vira antes.

“Ela estava alegre naquela época”, comenta o narrador, e filho. Por que não permaneceu assim? A alegria, a felicidade, o entusiasmo são dotes com tempo de validade, tanto para pessoas como para povos? É uma questão. Aliás, é “a” questão do filme. O que fazer da vida após um período de entusiasmo e euforia? Como viver depois que se foi intensamente feliz?

Questão pessoal, mas posta também para as outras duas dimensões do filme: o maio de 68 e o fim da primavera checa. Ora, na verdade, são duas primaveras e já se disse (e quem lá viveu sabe) que maio é o mês mais lindo em Paris. Em especial, aquele maio. Alguém a chamou, com certo exagero, de “a primavera do mundo”. Nessa estação florida estourou a rebelião estudantil, que tentou, em vão, articular-se aos operários.

Quem já participou de algum movimento com vocação revolucionária (não precisa ser nem uma revolução de verdade) conhece a euforia que essa experiência provoca. Há esse pique – essa adrenalina – nas imagens do maio francês.

Mas o filme traz também a desconstrução dos mitos. Ou a sua relativização. Daniel Cohn-Bendit, Danny, le Rouge, o líder que conquista a todos, inclusive a mídia, com seu charme e retórica, embarca para a Alemanha à custa de uma emissora. Escreve, no calor da hora, um instant book que lhe rende boa grana. Mas, e daí?, pode-se perguntar.

Sim, mas há também Charles De Gaulle, que acabou por vencer. Aparece uma vez na TV e outra no rádio, conclamando a população à ordem. Uma passeata a seu favor toma o Champs-Elysée. “A maior manifestação de maio foi aquela a favor de De Gaulle”, comenta a voz do narrador. Sim, o apelo à ordem, contra o perigo da desordem, é forte nas sociedades. Sabe-se disso. E então o movimento se desfaz.

Derrotado? Sim, mas nada sobrou dele? Foi como se nunca tivesse existido e todas aquelas frases – “a imaginação no poder”, “peçam o impossível”, etc – tem seu lugar apenas no folclore político do período? Nada de mais incerto. Porque, após 68, não apenas a França, mas o mundo, nunca foi o mesmo. Poucas derrotas foram tão vitoriosas quanto a do maio parisiense.

Mas há também a Checoslováquia, com o degelo de Alexander Dubceck abortado pelos tanques soviéticos. A população que se conforma, mas comparece em massa ao enterro de Jan Pallach, o estudante de 20 anos que se imola em protesto. Vitória dos opressores? Sem dúvida. A força bruta, a força do Estado dificilmente é derrotada. Apenas nas revoluções de verdade, como a de 1917, na Rússia, ou a de 1959, em Cuba. Mas o Estado não sai ileso, mesmo das revoluções que esmaga .

O filme procede a uma articulação de Praga com o Brasil. Quando fala da morte de Pallach, vêem-se imagens do corpo de Edson Luís, o estudante paraense morto no Rio no mesmo ano de 1968. Passeatas e um enterro comovente. No qual, no entanto, não se vê gente chorando, com exceção de uma moça ao pé do túmulo, como observa o narrador. A reação à morte foi um ato político e não expressão de luto e dor.

No Intenso Agora estabelece essa ligação explícita com o Brasil. E outra implícita, que, colocada na contraluz, remete às manifestações de 2013, as primeiras, as únicas que ainda tinham aquele sabor anárquico de espontaneidade e liberdade, que comportavam tanto a falta de pautas definidas quando o uso da violência como forma de luta.

O que foi feito daquele “intenso agora” de junho de 2013? Todos sabemos. Transformou-se em mobilizações de direita e da classe média instrumentalizada por quem desejava derrubar o governo.

O Intenso Agora é tudo isso. Um pouco sobre a felicidade fugaz. Outro tanto sobre a generosidade dos sonhos e a velocidade do desencanto com que são desfeitos. O efêmero da alegria e o desafio de manter o élan quando as esperanças se perdem.

Da maneira como é construído, a partir de imagens alheias e olhar próprio, este, que é o mais trepidante documentário político dos últimos anos, pode ser interpretado de várias maneiras.

Do jeito como o recebi, não se trata de maneira alguma de filme desiludido, como andou se dizendo. Ou imobilista, como também foi rotulado. É apenas um filme atento às dificuldades da História. Uma tomada de consciência sobre o voluntarismo e o otimismo ingênuo.

Toma três pontos cruciais do século 20 – a Revolução Cultural Chinesa, a Primavera de Praga, o Maio de 68, e o faz segundo uma ótica tanto pessoal quanto objetiva. Não é mero subjetivismo, apenas pelo fato de aludir à mãe do diretor e sua relação com a perda da felicidade. O diretor vê as imagens, as trabalha e as interpreta, isso sim. A maneira como comenta essas velhas imagens as ilumina. O jeito como Cohn-Bendit procede na televisão, os diálogos entre operários e estudantes, as posições relativas que ocupam quando falam. Tudo é significativo. Pode-se sempre discordar de interpretações, mas deve-se respeitar o rigor com que são feitas, como é o caso.

Em certo sentido, No Intenso Agora é o entrelaçamento entre o pessoal e o histórico, em torno da felicidade tanto pessoal como coletiva. “Minha mãe foi feliz na China; por que deixou de sê-lo?”. A Checoslováquia viveu o sonho do “socialismo de face humana” e o perdeu para a violência stalinista. O Maio de 68 arquivou o sonho de reinventar a vida diante do pragmatismo gaullista assumido pela nação.

Se o ritmo é o dos sonhos desfeitos, não resta dúvida de que o aceno da esperança está no final, em imagens, muito mais que em palavras.

Primeiro, nas imagens congeladas de uma das sequências mais alegres do Maio de 68, quando uma jovem atende ao telefone a mãe preocupada de um militante desaparecido havia uma semana de casa. E, depois, as famosas imagens das operárias saindo da fábrica Lumière, alegres, brincando, conversando entre si. Uma as imagens prínceps do cinema.

Se muito de No Intenso Agora é construído sob a nota baixa do signo de Saturno, seu desfecho nos acena com a marca da esperança. De alguma alegria possível. E, como dizia Oswald de Andrade, a alegria é a prova dos noves.

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