Mostra de Gostoso. Revendo Gabriel e a Montanha


São Miguel do Gostoso/RN – Deu pra fazer uma revisão legal de Gabriel e a Montanha com sua apresentação ontem à noite na Mostra de Cinema de Gostoso.
Vi o filme pela terceira vez – a primeira para o Prêmio Fenix, do México, depois o revi numa sessão de imprensa em São Paulo e, por fim, ontem, na Praia do Maceió, em Gostoso.

Nem era para ver inteiro, mas resolvi dar uma olhada para conferir a reação do público (foi boa), mas acabei cativado pelas imagens e fui ficando, ficando, até ver o filme inteiro, atraído pela história triste de Gabriel Buchman, que morreu jovem na África ao tentar escalar uma montanha.

Buchman, um economista carioca fanático pelo Flamengo, é interpretado por João Pedro Zappa, que esteve aqui para representar o filme. (E o fez muito bem, esclarecendo muitas dúvidas do público e jornalistas durante o debate).

Quando já se conhece bem o filme, fica-se liberado para curtir detalhes. No caso de Gabriel e a Montanha, várias sequências continuaram a me seduzir. Por exemplo, a discussão entre o personagem e sua namorada Cris (Carolina Abras, ótima). Gabriel é um economista formado pela PUC-Rio, portanto com ideias neoliberais. Ela é uma garota de esquerda. Os dois quebram o pau porque Gabriel, autoritário e machista, tende a desdenhar das ideias da namorada, que ele considera meio românticas, utópicas, sem fundamentação econômica. Reproduz, em sua fala, aquela soberba dos “liberais” em sua certeza de deter a última verdade sobre o mundo dos homens.

No entanto, Gabriel não é mau sujeito. Muito pelo contrário. Temos todos motivos para gostar dele. A começar por seu triste fim, o que não é um spoiler, pois anunciado desde o princípio do filme. É decisão do diretor não esconder desde o início que a história africana de Gabriel vai terminar muito mal. Essa decisão determina o modo como essa história será contada. É um dado de estrutura. E fértil, na minha opinião.

Mas não se trata de pena, ou compaixão. Não apenas. Gabriel é admirável, pois se relaciona muito bem com os habitantes dos países por onde passa. É humano, risonho, simpático, solidário, generoso. Todos parecem gostar dele, menos um guia, com o qual discute. Mas é apenas um; os outros o adoram. Gabriel, apesar das ideias econômicas e do projeto de continuar os estudos em Harvard, é um brasileiro típico e bem resolvido. Gosta das pessoas com as quais convive.
Gabriel come com eles, pega carona, dorme na casa deles; é um anti-turista. De vez em quando tem surtos de pão durismo. Mas, no geral, é um mão aberta com o pouco que tem. É ousado e teimoso. E a teimosia termina por perdê-lo.

A cena da discussão entre Gabriel e Cris é típica do cinema de Barbosa.É uma espécie de digressão, mas que se articula com perfeição na narrativa. Em Casa Grande, havia uma longa discussão sobre a questão de cotas raciais – um dos tormentos do pensamento conservador no Brasil, que não aceita essa política de modo algum. Em Gabriel e a Montanha, trata-se do debate entre dois modelos econômicos antagônicos.

Na entrevista, o ator que representa Gabriel disse que a cena foi praticamente escrita pela verdadeira Cris, a namorada de Gabriel. Era algo entre os dois, algo que pegava na relação e a deixava um tanto tensa. A discussão política, quer dizer, econômica, entra no texto da obra de maneira natural. Aconteceu na realidade.

E faz parte da fluidez do filme. Na sequência, eles discutem no interior de um ônibus estacionado e são a todo instante interrompidos por vendedores ambulantes, até que por fim chega um conhecido de Gabriel e a conversa termina sem qualquer conclusão. Mas para nós, espectadores, ela já é suficiente.

Muitas vezes as coisas são assim ao longo do filme. Inconclusas, como são na vida.

Tudo isso para dizer que o filme tem uma vivacidade, um frescor de coisa vivida e experimentada. É a narrativa que cativa o espectador, e não apenas a simpatia do personagem.

Além do mais, houve a opção, que (sempre segundo depoimento de Zappa) foi sendo estabelecida ao longo da produção – a de usar como personagens as pessoas com que o verdadeiro Gabriel se relacionou em sua aventura africana. Isso dá uma autenticidade muito grande. Inclusive porque, a par de representarem seus próprios papéis, essas pessoas dão depoimentos sobre Gabriel como se estivessem falando em um documentário.

Desta mescla entre ficção e documentário nasce o veio que alimenta o rio fértil deste filme. Tão bom de ver, melhor ainda de rever. Emocionante, nunca piegas, intenso, descolado, humano e contraditório, talvez o melhor nacional até agora, ao lado de No Intenso Agora, de João Moreira Salles.

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