Mostra de Gostoso. Política das ruas e dos afetos


São Miguel do Gostoso/RN
Dois filmes políticos – cada qual à sua maneira – deram seguimento à Mostra de Gostoso. Foram duas bonitas sessões no cinema montado na Praia do Maceió, sob céu estrelado e com a brisa do mar trazendo um friozinho de leve à plateia.

Escolas em Luta, um documentário ativista, mostra a militância dos secundaristas de São Paulo, vitoriosos contra um governo que tentava desativar vários colégios públicos.

À maneira dos documentários diretos, flagra, a quente, as manifestações e os enfrentamentos com a PM paulista. Alterna essas cenas de ação com os bastidores do movimento e entrevista algumas de suas figuras mais destacadas.

Nem se poderia falar em “lideranças” pois o movimento se caracteriza mais pela horizontalidade que pela emergência de figuras individuais. Mesmo assim, duas meninas ficam mais evidência, explicitando o protagonismo feminino em mais esta área.

Este é mais um documentário de urgência, destes que vêm surgindo neste momento difícil em particular da cena política brasileira. À ilegitimidade do governo federal somam-se tentativas de regressão em vários campos, do moralismo de fundo religioso à quebra de direitos dos trabalhadores. Em meio a tudo, e inclusive à pasmaceira da população, alguns setores se rebelam e resistem – negros, mulheres, grupos LGBT e, em meio aos estudantes, os secundaristas, que surpreenderam a todos com seu movimento corajoso, assertivo e coroado de êxito – ao menos temporário. Quando os marmanjos se encolhem, ou se omitem, coube à garotada botar a cara para quebrar.

Já Café com Canela seria, em aparência, o menos político dos filmes. Rodado no Recôncavo Baiano, nas cidades de São Félix e Cachoeira, narra, em particular, uma história de afetos. Mas o fato de ser interpretado por um elenco composto quase exclusivamente por atores e atrizes negras lhe dá uma posição especial neste momento em que questões de gênero e raça emergem com força no Brasil (a exemplo do que acontece no mundo).

Revisto, o filme revela uma dupla face em termos de linguagem cinematográfica. De um lado é simples, aberto, honesto, como um bom filme popular. De outro, desenvolve-se numa narrativa mais complexa, com idas e vindas no tempo, mistura de registros e uma trama cujos polos de tensão se revelam apenas aos poucos e não de maneira evidente. A história fica clara apenas da metade para o fim, o que exige do público disposição de seguir os personagens por um tempo sem captar direito suas motivações.

Por exemplo, as imagens de abertura são as de uma reunião de amigos, cujo propósito só ficará claro no final da história. Também no começo há imagens um tanto toscas, amadorísticas, de uma festa infantil, captadas em VHS. A festa celebra o aniversário do garoto Paulinho, cujo destino será fundamental para a trama.

Mas quem desponta em cena são duas figuras femininas, a vendedora de coxinhas Violeta e a ex-professora Margarida. Violeta é aquela boa samaritana baiana, sempre disposta a ajudar os outros. Uma boa alma, risonha, de bem com a vida, casada, dois filhos. Ela tem uma dívida de gratidão com Margarida, que foi sua professora no curso elementar. E a história dessa dívida move o filme.

Outros personagens entram na história. Entre eles, Ivan, um médico gay interpretado por Babu Santana, único paulista num elenco de baianos.

Não cabe aqui enumerar as peripécias deste filme terno, simpático – e iluminado em muitos momentos. Basta dizer que ele evoca um Brasil que está sendo perdido, aquele dos vizinhos que se ajudam entre si, entram e saem na casa dos outros como se estivessem nas suas, falam, conversam e se emocionam.

Perguntei ao diretor Ary Rosa o quanto havia de idealizalização neste retrato e ele me disse que Cachoeira, como outras cidades, também sofre com a crise e com a violência. Mas as suas gentes são desse modo mesmo. Enfim, é um velho Brasil que resiste ainda ao processo de brutalização acelerada dos últimos anos. O Brasil profundo, poderíamos dizer. E que felizmente existe em paralelo ao triste e medíocre Brasil oficial.

O fato de o elenco ser quase exclusivamente negro reflete a composição racial da região, diz também o cineasta. “80% da população é negra, então qualquer outra proporção seria falsa”, diz.

O filme pode apenas ter refletido um dado de composição demográfica. Mas tocou fundo as pessoas ao verem uma população negra em situação de absoluta normalidade, sem violências ou discriminações, rindo, sofrendo e vivendo como qualquer ser humano, independente da cor da pele. Ou seja, exatamente como deveria ser, mas não é.

Ao apontar para este sentido, Café como Canela tornou-se um filme político, qualquer que tenha sido sua inspiração de origem.

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