O prazer dos olhos: ‘Belle de Jour’


Hoje vemos filmes em qualquer suporte – da TV ao celular. Nenhum moralismo nessa constatação – todos fazemos o mesmo.

No entanto, de vez em quando é preciso retornar às origens, ver um grande filme numa tela grande. Foi o presente que me dei outro dia revendo Belle de Jour, A Bela da Tarde, de Luis Buñuel no cinema.

Catherine Deneuve é uma figura inesquecível. Ela faz Séverine, mulher de um cirurgião (Jean Sorel) que alimenta fantasias de estupro e punição. (Me pergunto se um filme como este poderia ser feito hoje em dia. Talvez fosse sumariamente descartado como machista, misógino, doentio, tudo isso junto).

A alusão de um amigo, Husson (Michel Picolli), a um bordel faz com que Séverine sonhe em realizar seus desejos secretos.

Uso o verbo “sonhar” e a expressão “realização de desejos” porque o filme, tirado de um romance de Joseph Kessel, obviamente tem em Freud uma inspiração mais ou menos explícita. O sonho como realização de desejos inconscientes – eis aí a lição do primeiro Freud, aquele de A Interpretação dos Sonhos (1900). Há uma relação entre surrealismo e psicanálise, que não era bem aceita por Freud. No entanto, os surrealistas, de Dali a Buñuel, nunca deixarão de reivindicar essa filiação.

O bordel torna-se para Séverine esse campo experimental da realização de desejos sadomasoquistas. Sabemos que ela é frígida com o marido (o belo Sorel) e, no entanto, goza com os clientes. Numa cena, está deitada, exausta, após fazer amor com um cliente (o oriental da famosa caixinha preta). A arrumadeira do bordel se compadece dela. Séverine responde, com enfado: “O que você sabe disso?”. O saber do desejo se conhece por sua realização, assim como o sabor da pêra se desvenda ao comê-la.

Enfim, Belle de Jour passeia pelo paradoxal do desejo humano, que dificilmente pode ser normatizado sem perder sua essência anárquica. É um filme subversivo, lindamente fotografado, e que mantém, em seu desenho visual, a ambivalência entre sonho e realidade.

O que é fantasia ou realidade para Séverine? O “real” é apenas um – o do desejo. E, dele, Séverine não pode fugir.

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