Dividindo-se entre teatro e TV, sobrou um espaço menor na carreira de Fernanda Montenegro para o cinema. Filmografia reduzida, porém com alguns títulos fundamentais e interpretações inesquecíveis.
A começar por sua estreia em A Falecida (1965), de Leon Hirszman, adaptada da peça de Nelson Rodrigues. Ela faz Zulmira, dona de casa suburbana que trai o marido com um homem rico (Paulo Gracindo). Conta-se que Nelson Rodrigues achava a versão um tanto fria por Hirszman ter apostado no subtexto da alienação da personagem (um tema marxista). Mas pode ser apenas implicância de um autor que se autodeclarava “reacionário”. O filme é muito bom e a interpretação de Fernanda, genial. Basta lembrar da cena em que ela, despertada de sua depressão e morbidez, sai no quintal sob uma chuva forte, como se esta pudesse lavar seus males de alma.
Outro grande papel como a dona de casa Elvira, em Tudo Bem (1978), de Arnaldo Jabor, um estudo da classe média ufanista em meio ao “milagre econômico” da ditadura militar.
Em Eles não Usam Black-tie (1981), também de Hirszman, ela faz Romana, esposa do ativista sindical Gianfrancesco Guarnieri (autor da peça original). A situação é dramática e reflete sobre os movimentos grevistas do ABC, os primeiros da era militar. Há uma cena de antologia, num momento trágico da trama, quando um militante é morto pela polícia. Romana e seu marido estão na cozinha, conversando em voz baixa, enquanto ela vai separando feijões para fazer a comida. Um gesto do cotidiano, em meio ao luto, para dizer que, afinal, a vida continua.
Mas talvez o grande papel de Fernanda no cinema seja em Central do Brasil (1997), de Walter Salles, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim. Fernanda ganhou o Urso de Prata de melhor atriz por sua interpretação de Dora, mulher endurecida que se enternece por um menino perdido em busca do pai (Vinícius de Oliveira). O filme é comovente. Em sua apresentação no Festival de Recife, foi aplaudido em pé, durante vários minutos, por uma plateia emocionada. Enquanto agradecia no palco, Fernanda segurava a mão de Vinícius e, com sabedoria de atriz veterana, lhe dizia: “Aproveite, menino, porque não é sempre assim”.
Em O Auto da Compadecida (1999), um dos grandes sucessos da Retomada (mais de 2 milhões de espectadores, depois de ser exibido como minissérie na Globo), Fernanda faz uma Nossa Senhora de ar bondoso, justa, e, ao mesmo tempo, irônica. Ela é quem deve convencer o filho, Jesus, a perdoar João Grilo (Matheus Nachtergaele) e seus amigos, livrando-os do inferno. O papel é pequeno, mas a presença de Fernanda faz com que sempre a lembremos ao evocar este filme baseado na peça de Ariano Suassuna e dirigido por Guel Arraes.
Do Outro Lado da Rua (2004), de Marcos Bernstein, tem Fernanda num tema pouco usual no cinema brasileiro, o amor na terceira idade. O filme é digno, embora pouco inspirado, e traz uma Fernanda sempre digna, emprestando sobriedade ao papel.
Em Casa de Areia (2005), ela contracena com sua filha Fernanda Torres, no longa dirigido por seu genro, Andrucha Waddington. Filme interessante, às vezes comprometido por seu artificialismo.
Fernanda teria outros papéis menores, como em Olga, vivendo Leocádia Prestes, a mãe de Luiz Carlos Prestes, ou em episódio de Viva Esta Canção, Samba do Grande Amor, de Cacá Diegues, ou ainda em Traição, baseado em crônicas de Nelson Rodrigues e dirigido por seu filho Cláudio Torres.
Fernanda viveu todos esses pequenos papéis com a grandeza de sempre. Mas se tivéssemos de ficar com suas três maiores personagens no cinema, estas seriam a Zulmira de A Falecida, a Romana de Eles Não Usam Black-tie, e Dora, de Central do Brasil. Apenas elas já bastam para dar a dimensão de uma atriz completa no pleno domínio de sua arte.