FORTALEZA
Em 2010, Felipe Nepomuceno fez uma entrevista com Eduardo Galeano na casa do escritor, em Montevidéu. Com a morte de Galeano (1940-2015), Felipe resolveu fazer da entrevista a base para um longa-metragem, Eduardo Galeano Vagamundo, apresentado na mostra competitiva do Cine Ceará. Florência Galeano, filha do autor de Veias Abertas da América Latina, esteve em Fortaleza para acompanhar a sessão.
A frase de Miles Davis “a verdadeira música é o silêncio” foi citada por Florência como uma das favoritas do seu pai. “Papai amava o silêncio, entendia o seu valor e acho que, nesse sentido, o filme contempla muito bem o seu mundo”, disse.
De fato, o filme mescla algumas falas de Galeano na entrevista original a textos de sua autoria, lidos por gente como o artista plástico Francisco Brennand, o escritor Mia Couto, os atores João Miguel e Ricardo Darín. Usa também imagens de cobertura, tomadas nas ruas de Montevidéu, dias de chuva, etc. Tudo em preto e branco, usando delicadamente a música, mas respeitando os silêncios, as pausas e, sobretudo, os tempos estendidos. Tempos de reflexão. Um belo e emocionante filme.
Há um detalhe – importante. Quem conhece a prosa de Galeano sabe que ela flerta com o poético. Cresce, portanto, quando dita em voz alta. “Toda poesia aspira a ser dita em voz alta”, já se disse. É literatura e também música. Esse procedimento faz com que a musicalidade dos escritos de Galeano fique mais evidente.
Em conversa com os jornalistas, Felipe (filho de Eric Nepomuceno, escritor e tradutor de vários autores latino-americanos, Galeano inclusive) falou da dificuldade em escolher os textos usados no filme em meio a uma obra vasta e estendida em várias temáticas. Galeano escreveu sobre tudo, de futebol a política, passando pelo cotidiano, no qual privilegiava a gente humilde.
Numa das sequências do longa, Galeano diz que um crítico havia percebido que ele tinha olho para de microscópio e telescópio ao mesmo tempo. Olhava para aquilo que é tido como pequeno e também se fascinava com o infinito do universo.
Entre os textos lidos, um fica gravado indelével na memória, o dedicado a Arthur Bispo do Rosário e lido por João Miguel, em que Galeano interpreta uma arte divina, feita a partir de restos.
Felipe contou um bastidor da filmagem: “Depois de dizer o texto, o João Miguel ‘incorporou’ o Bispo e improvisou por uns dez minutos um diálogo entre ele e Galeano. Foi arrepiante”, diz.
O representante colombiano Amália, a Secretária, de Andrés Burgos, é uma comédia em chave baixa. Ou, como alguns gostam de classificar, uma “dramédia”. A protagonista (Marcela Benjumea) é a secretária de uma firma à beira da falência. Seu cotidiano é composto, basicamente, em não fazer nada. Descobre que seu patrão está tentando pelo suicídio e esconde as balas do revólver. Tudo muda, de maneira sutil, quando chega um eletricista para reparar uma toma queimada.
Um tanto óbvia do ponto de vista imagética, Amália conta com um roteiro interessante, que leva a história por caminhos inesperados. (Devemos agradecer a todos aqueles que, num mundo de obviedades, fazem filmes que não sabemos para onde vão). Aos poucos, vamos vendo emergir na tela uma vida pequena (daqueles que Galeano gostava de retratar para mostrar que não são exatamente “pequenas”), um cotidiano vazio em companhia de uma mãe já doente e muda, e uma amiga única, esta cheia de vitalidade. E a verdade é que o filme, que parece um tanto insosso no começo, vai melhorando à medida que a narrativa progride. Deixa uma boa lembrança, um sabor agridoce que acaba sendo refinado no paladar do espectador.