Cine Ceará 2018: Anjos de Ipanema


FORTALEZA – O Brasil vivia o sufoco da ditadura, mas no trecho de praia em torno do Píer de Ipanema havia um território livre no País. Em meio à antiquada – e violenta e arbitrária – política oficial, vicejava a contracultura nativa, com livre troca de ideias, livre consumo de drogas e livre comportamento sexual. Não, não se trata de redundância do texto – o que lá se cultivava e, vale dizer, em outros lugares do País, era uma flor rara naqueles tempos, a liberdade. Esse é o tema do documentário de Conceição Senna, Anjos de Ipanema.

“O que me fez contar a história foi uma certa nostalgia da época e este momento obscuro em que hoje vivemos”, diz a diretora. “Nossa geração já havia vivido um golpe e procurei os amigos da época, os que mantinham o sentimento do amor, da paz, que hoje fazem trabalhos comunitários, e cultivam o amor e solidariedade com os seres frágeis do nosso país.”

O filme trabalha com pouco material de arquivo e, basicamente, com depoimentos de personagens daquela época, início dos anos 1970.

Em termos esquemáticos, o Brasil havia passado os anos pós-golpe com relativa liberdade no âmbito cultural. Esta terminou com o AI-5, quando a ditadura se implantou de vez e mostrou suas garras. Havia a resistência armada, que acabou dizimada pelas forças da repressão e havia a resistência cultural, que muitas vezes também foi para o exílio, como são os casos notórios de Gil e Caetano e também de Chico Buarque, Glauber Rocha e outros criadores.

Claro que é um tanto mecânico dizer que à desilusão com a luta armada sucedeu-se a contracultura. Mecânico, porque ela estava já estava presente em outros países e, de certa forma, o Brasil a importou, como importa outros bens de consumo. O hippismo, a ideologia da paz e do amor, o uso das drogas como forma de expansão da consciência, o sexo livre – tudo isso eram manifestações jovens da época e ressoavam por toda parte, inclusive no Píer de Ipanema, em Arembepe, nas Dunas do Barato, as Dunas da Gal.

Esquematismo à parte, vivia-se (quem foi do tempo sabe) uma tensão permanente entre a resistência política “tradicional” e a
contracultura, que era, sem dúvida, um outro tipo de resistência, porém bem mais tolerada pelo regime.

O filme desenvolve-se na fala dos personagens (mulheres em sua maioria) e traz depoimentos interessantes, em que pese alguma autocomplacência, como a do grupo se apresentar como reserva de transgressão em um tempo careta, como é inegavelmente o nosso. Menos, menos…

Conceição refuta a pecha de alienados que a esquerda tradicional pregava no pessoal da paz & amor.

“A militância política estava presente em cada ato. Mas a nossa atuação era a cultura. A música dos Novos Baianos, Gal, os meninos Gil e Caetano, estavam em Londres. Não éramos alienados. Aquilo ali se tornou um refúgio. Muita música, muito teatro. E éramos vigiados, tinha gente dos órgão sde segurança tirando fotos.” Em certo momento, a atriz Sonia Dias diz: “a última ordem é dispersar.”Sinal de que mesmo a guerrilha do Píer estava ficando perigosa.

Colômbia

O colombiano Senhorita Maria, a Saia da Montanha, de Rubén Mendoza, foi o segundo documentário da noite.

Traz um personagem muito forte, a transexual Maria Luiza, que nasceu e vive no ambiente acanhado de um povoado rural, Boavita.

“É um povoado muito conservador, muito religioso. De tal forma que chega a surpreender o fato de não terem matado uma pessoa tão perturbadora, para padrões locais, como Maria Luiza”, diz o diretor.

O filme é muito respeitoso com a personagem. Mostra-a no seu cotidiano isolado, em seu pequeno sítio, plantando ou fazendo a colheita, cuidando de animais. Não existe qualquer intenção de tratá-la como freak, ou de modo exótico, como foi acusado durante o debate.

“Esconder que ela é diferente no meio daquela comunidade seria mentir”, defendeu-se o diretor. “Ela é a pessoa mais só que jamais encontrei durante minha vida. Não tem um amigo, não tem um parente. Dessa forma, para sobreviver, achei que deveria ter uma profunda força interior.”

https://www.youtube.com/watch?v=lR0NIKn4y2Y

O documentário é hábil não apenas em perfilar um personagem, mas descrever, com sua câmera, todo o seu entorno. Sente-se no filme a religiosidade profunda do ambiente, em suas procissões, na adoração do Senhor morto, nas músicas de Sexta-Feira da Paixão tocadas por uma banda infantil. Uma das cenas marcantes é a Descida da Cruz de uma imagem de Cristo, um boneco articulado que depois é lavado pelas mulheres em sequência tão comovente como mórbida.

Há também depoimentos que veiculam o falatório da aldeia em torno de Maria Luiza. A de que seria fruto de uma relação incestuosa entre irmãos e teria nascido como um bebê provido de chifres e cauda. Por momentos se tem a impressão de estar num daqueles povoados da Idade Média, em que boatos de bruxarias acabavam em tortura e nas fogueiras da Inquisição.

De fato, estranha-se que, neste ambiente, Maria Luisa, que além de tudo sofre de epilepsia, esteja viva e sã. “A sua fragilidade é sua força”, constata o diretor. “Um terremoto derruba um edifício, mas poupa uma simples espiga de milho”, exemplifica. Maria Luisa e vista em sua profunda relação com a terra e no carinho com os animais. Sua presença emociona espectadores que veem o documentário de maneira desarmada.

De fato, é preciso procurar muito pêlo em ovo para achar que Maria Luisa foi desrespeitada no filme.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.