FORTALEZA – Che, Memórias de um Ano Secreto, de Margarita Hernandez, foi apresentado fora de concurso e tornou-se no, até agora, mais aplaudido título do festival. Prova do carisma inoxidável do Che ou de que o filme é bom mesmo? Provavelmente as duas coisas.
Margarita debruçou-se sobre um ano misterioso na biografia de Ernesto Guevara de la Sierna. 1965 é uma espécie de buraco negro nas biografias de Ernesto Guevara. Uma das figuras mundiais mais notórias, desde a Revolução Cubana de 1959, o Che parecia ter sumido do mapa. Renunciara, em carta pública, a todos os seus cargos no governo de Cuba e, inclusive, à cidadania cubana. E sumira do mapa, apesar de ter a CIA e outros serviços de segurança em seu encalço. Vivia-se, recorde-se, a Guerra Fria.
Na verdade, o Che preparava-se para outras aventuras revolucionárias, na África e, depois, na Bolívia. Devia permanecer incógnito, apesar de ser um dos rostos mais manjados do planeta.
A ideia inicial de Margarita era fazer um documentário sobre um certo Dr. Luis Carlos Garcia Gutiérrez, dentista cubano, que todos conheciam pelo apelido de Fisín. Ora, Fisín era apenas um dentista de
celebridades nos tempos do ditador Fulgêncio Batista. Era quem remodelava a dentição dos ricos e famosos e também das coristas do Tropicana, que precisavam de belos sorrisos para sua profissão.
Fisín aderiu à Revolução, tornou-se membro do Partido Comunista e, o que poucos sabiam, funcionário do Serviço Secreto cubano. Foi designado para “disfarçar” o Che, que precisava se deslocar pela Europa depois do fracasso da guerrilha no Congo, voltar incógnito a Cuba e preparar-se para a campanha na Bolívia. Fisín este com o Che na África e na então Checoslováquia e o deixou irreconhecível. Cortou as melenas famosas do guerrilheiro e raspou-lhe a barba. Providenciou óculos de fundo de garrafa e saltos para que parecesse mais alto. Toque final na obra-prima, uma prótese dentária que tornava a mandíbula proeminente e arrebitava o nariz. Nem os auxiliares mais íntimos do Che o reconheciam. Sua mulher foi visitá-lo e estranhou aquele homem que se dirigia a ela com tanta intimidade.
Acontece que a direção do documentário foi prevista pelo próprio Fisín. “Você vai começar a fazer um filme comigo e vai terminar fazendo um sobre o Che”, disse. Dito e feito. Jamais o Che poderia entrar como coadjuvante num filme de que fizesse parte. Sua
personalidade era forte demais para isso.
O filme é muito revelador. Inclui depoimentos do agentes secretos que acompanharam o Che em seus últimos percursos. Testemunham o fracasso da campanha no Congo, em ambiente hostil e culturalmente pouco propício à revolução. E o desfecho na Bolívia, quando Guevara não recebeu os apoios que esperava e viu-se sozinho em território inóspito.
Che, Memórias de um Ano Secreto, tira sua força de uma série de fatores. Um deles é a profusão de materiais, fotos, filmes, um deles um comovente filmete doméstico da família Guevara, mostrando o futuro guerrilheiro ainda menino, brincando numa praia argentina. Os depoimentos são muito consistentes. Além de Fisín, um tipo impagável, que entrevistamos anos atrás aqui mesmo no Cine Ceará, há os companheiros de luta e trabalho do Che, sobreviventes ainda de um período épico da história mundial.
Há também um cuidado de contextualização histórico, da Guerra Fria, a luta por supremacia entre as superpotências e o papel estratégico ocupado pela pequena ilha comunista, situada a 100 léguas de Miami.