Seria um exagero dizer que assistir ao novo Lars Von Trier – A Casa que Jack Construiu – seja uma experiência prazerosa. Mas também não se pode negar que seja interessante. Von Trier, todos sabem, filma muito bem, e não lhe faltam referências culturais e cinematográficas. Fez parte do movimento Dogma 95 e tem em seu currículo alguns filmes maravilhosos como Ondas do Destino, Dogville, Manderley e Melancolia.
A Casa que Jack Construiu é a história de um serial killer, interpretado por Matt Dillon. Jack mata, de preferência mulheres, e faz parte do clã daqueles assassinos intelectuais, que falam da História da Arte com a segurança de professores universitários.
O próprio filme é cheio de referências culturais, como a recorrente cena do pianista canadense Glenn Gould interpretando uma peça de Bach (para constar: a maravilhosa Partita nº 2, em dó menor). Gould, todos os apreciadores sabem, gostava de entoar as vozes da melodia enquanto executava ao piano. Tornou-se o próprio ícone da perfeição em matéria de arte, em especial por sua leitura das 32 Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach.
Bem, as imagens recorrentes de Gould indicam que Jack busca nada menos que a perfeição. É assim com a tal casa que constrói e que dá título ao filme. Num lugar afastado, à beira de um lago, ele compra um terreno, desenha diversas plantas e começa a construção. Interrompe várias vezes e manda demolir o que já havia sido feito porque não se dá por satisfeito. É uma imagem. A construção do mundo perfeito sempre falha. E quem não suporta a imperfeição sofre muito.
Desse modo, Jack define-se como um assassino com TOC. Obsessivo. Maníaco com limpeza e com a sutileza da morte que inflige às suas vítimas. Estas são mostradas, uma após a outra, com todos os detalhes e com o tempo necessário para que sejam “fruídas”. Pois esta é a impressão que fica: a de que o assassino sente intenso prazer em aterrorizar e depois liquidar as vítimas (de preferência mulheres) e, claro, partilhar esse gozo com o espectador através do voyeurismo do diretor.
Tal impulso é temperado por um constante diálogo entre o assassino e uma voz em off, que questiona a falta de humanismo dos seus propósitos. Só iremos descobrir mais para o fim a quem pertence tal voz e o personagem que encarna. Não faltarão, mais para o final, outras referências cultas, como a Nietzsche, e a maior de todas, a Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Esse entorno culto e cultural, extraindo referências tanto da literatura, da música, da pintura e do próprio cinema, não basta para apaziguar o profundo sentido anti-humanista da obra de Lars von Trier. Artista indiscutível tanto na originalidade como no domínio da forma, von Trier parece sempre encarnar uma presença problemática no mundo. De vez em quando, arranja encrenca com essa perspectiva um tanto “doentia”, como quando foi expulso do Festival de Cannes por referências simpáticas e compreensivas…a ninguém menos que Adolf Hitler.
O impulso da provocação às vezes parece prejudicar a arte de von Trier e levá-lo por caminhos meio sem saída, do ponto de vista tanto estético quanto ético. A tentativa de compreensão da presença do Mal no mundo às vezes resvala para uma complacência com o próprio Mal. Talvez revela mesmo, no fundo, a admiração do artista pelo Mal. Essa tentação fáustica não sublimada pode ser um limite para o artista dinamarquês, como já foi para alguns outros.