A distopia de Gaspar Noé


Clímax, do franco-argentino Gaspar Noé, tem provocado polêmicas. O que é bem compreensível, em se tratado de Noé. Para quem não lembra – ele é diretor de Irreversível, um filme contado de trás para frente que, no meio, apresenta uma insuportável cena de estupro de 11 minutos, com todos os detalhes expostos.

Neste novo filme, Noé imagina uma companhia de baile formada por gente de todas as etnias, cores, preferências sexuais etc. Tem até uma mãe de família com seu filho pequeno. A companhia vai comemorar alguma coisa num ambiente retirado, é servido um ponche. A beberagem vem batizada com LSD, o que transforma a festa em selvageria sem medidas. Nunca se viu bad trip como esta.

Qualidades cinematográficas o filme tem. Começa com os personagens se apresentando no que deve ser um vídeo gravado numa tela de TV. A telinha está rodeada por livros e filmes que devem ser como uma súmula das preferências culturais do próprio diretor, quer dizer, Gaspar Noé.

Depois são vistos os movimentos, muito plásticos, do corpo de baile. Há uma sequência, já na festa, em que a câmera filma do alto cada um dos bailarinos se apresentando – e dando tudo de si – no meio de uma roda formada pelos colegas. É muito bonito. Depois a coisa desanda.

A ideia talvez seja mostrar como o homem (e, claro, a mulher) é o lobo do homem quando uma tênue camada de civilidade se rompe. Isso sabemos. E que esse rompimento pode ser provocado por drogas, que relaxam a censura, a contenção e o superego, e isso também sabemos.

O que parece novidade é a generalidade de uma bad trip alucinógena, como se as tais “portas da percepção”, como dizia Aldous Huxley, conduzissem direto ao inferno, sem exceções, o que não é, nem de longe, o que se observa.

Em especial na década de 1960, muitos artistas foram buscar no “ácido” a liberação do seu mundo onírico. Um deles foi Federico Fellini, que fez uma “viagem” monitorada por médico, que turbinou sua já exacerbada imaginação. O resultado foi um filme belíssimo e pirado como Giulietta dos Espíritos. Não consta que Fellini tenha saído por aí agredindo ou estuprando pessoas. Pelo contrário, imerge no universo feminino com uma sensibilidade sem igual.

Bem, mas vamos imaginar que uma viagem de ácido, nos dias de hoje, só possa mesmo ser uma bad trip, tão embrutecidos andamos. Aquela viagem que desperta pânico nas pessoas, paranóias assustadoras, agressividade e apetites sexuais insuspeitados. É o que sugere Noé em sua distopia.

Clímax é um exercício cinematográfico interessante. Parece filmado num único plano-sequência, mas, na verdade, é estruturado numa montagem “invisível”. Esse fluxo contínuo era obrigatório para jogar os personagens – e o espectador – num turbilhão de emoções que a tudo engolfa, sem jamais um segundo reservado para a reflexão.

Se em certos aspectos, Clímax é mais contido que filmes anteriores de Noé, mostra também a vocação de provocador e exibicionista do diretor. Em Irreversível, o estupro de Monica Bellucci, filmado em detalhes; em Love, o orgasmo masculino exibido em primeiro plano. Há cenas parecidas em Clímax, mas sem a mesma intensidade.

Sobressai esse domínio da câmera e da montagem que, no entanto, subordina-se a um exibicionismo que, de certa forma, esvazia o filme e o torna autorreferente. Por outro lado, a busca do escândalo pelo escândalo parece bastante artificial, como sempre. Não se trata de atenuar o que não pode sê-lo. Mas a inclusão de cenas chocantes parece uma estratégia de marketing para distinguir um produto nesse mercado global saturado pela super oferta.

Há um quê de fake em Clímax e essa impressão não nos abandona quando o filme termina. Fica como um retrogosto e não dos mais saborosos.

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