A anedota é bem conhecida em nosso meio.
Dois críticos saem juntos após uma sessão de cinema.
Um pergunta ao outro: “E aí, gostou do filme?”
Resposta: “Não sei, não escrevi ainda.”
Como quase toda anedota, esta tira sua graça de um certo exagero. Evidente que o crítico “sabe” se gostou ou não, de acordo com as sensações e pensamentos que teve ao assistir a obra. O que ele não tem, antes de escrever, é a forma desse gostar, não gostar ou gostar mais ou menos.
Pelo trabalho com a palavra ele construirá esse pequeno ensaio que se chama crítica, no qual tentará demonstrar que seu gosto pode ser pessoal e subjetivo, mas nada tem de arbitrário.
Mas as coisas são mais complexas um pouco. Todo mundo que escreve sabe que as ideias prévias vão sendo moldadas e modificadas no próprio ato da escrita. Não é raro começarmos a escrever sobre determinada obra e, no processo, descobrimos que gostamos dela mais do que pensamos a princípio. Ou menos. Ou gostamos ou desgostamos por razões que antes não suspeitávamos.
É que a escrita é pensamento em movimento. Ela não “traduz” um sentimento prévio que está em nós, mas o constrói à medida que vai se fazendo.
Além do mais, se até agora usamos e abusamos do verbo “gostar”, sabemos que uma crítica digna deste nome vai além das questões de gosto pessoal. Não importa tanto o fato de eu gostar ou não de uma obra, mas a minha capacidade de entendê-la (ou não). E de transformar esse entendimento na linguagem chamada crítica.
Daí chegarmos a essa fórmula mínima, que se parece a um truísmo: a crítica como ato de escrita.
Mas será assim mesmo? Ainda mais num tempo em que proliferam comentários sobre filmes nas mais diversas plataformas – rádio, TV, podcasts, youtube, etc. Serão menos crítica por causa disso?
Acredito que não. O que temos, em qualquer um dos casos, é a relação entre a obra e a palavra. E esta é problemática em qualquer circunstância.
Lembro, aqui, um pequeno episódio pessoal. Estávamos numa mesa de debate, Jean-Claude Bernardet e eu. À sua maneira franco-irônica, Jean-Claude se referindo a uma crítica minha, disse algo assim:
“Gostei demais do seu texto, muito culto e enriquecedor. Só não consegui ver muito bem a relação entre ele e o filme que você comentava”.
Bingo!
Nem sempre, aliás como muita frequência, não conseguimos estabelecer essa conexão entre o que escrevemos e a obra. Por exemplo, podemos escrever muito bem sobre as sensações e emoções que a obra nos desperta sem que falemos sobre a obra em si mesma. Um filme, qualquer um, pode nos despertar uma certa nostalgia, uma emoção saudosa (agradável como uma leve coceira) e nem por isso estaremos escrevendo sobre ele. Escrevemos sobre a nossa emoção, sobre a nossa nostalgia de um tempo perdido, etc. É um ato mais de autobiografia do que de crítica.
De maneira que é preciso encontrar a boa distância para escrever sobre a obra, o filme, em nosso caso. Não podemos (não devemos, eu creio) ignorar o que ele nos desperta em termos de sensações, emoções e recordações. A crítica é sempre autoral, sempre fala do crítico, ao menos em parte.
Mas não podemos nos contentar com isso e nem nos tornarmos reféns de sentimentos despertados pela obra. No caso do cinema, precisamos nos defrontar com o material audiovisual com que essa obra é construída, assim com um crítico literário deve se deparar com as palavras do escritor, um crítico de artes plásticas com o material pictórico e o crítico musical com a massa sonora do compositor.
Tudo isso é mais fácil falar que fazer. No caso da crítica literária, pode-se dizer que ela utiliza o mesmo “material de construção” da obra. Mas e nos outros casos? Usamos palavras para falar de obras audiovisuais, palavras para falar de pinturas, palavras para falar de música (a mais abstrata das artes, segundo Hegel). Tudo é palavra. Isso não cria uma questão, digamos, epistemológica, já que usamos de um conjunto de signos para abordar outro conjunto, de ordem diferente? Uma operação que alguém já batizou de “transemiótica”?
Qual a relação entre “as palavras e as coisas”?, para usar o título de um dos grandes livros de Michel Foucault que, aliás, usou Jorge Luis Borges como fonte de inspiração sobre essa meditação acerca dos limites e alcances da narrativa em diversas épocas?
São questões espinhosas, porém estimulantes, que um crítico, digno deste nome, precisa enfrentar.
(work in progress. a continuar)