O audiovisual brasileiro viveu um dia de terror na quinta-feira. A boataria internética dava como certa, ou pelo menos provável, a extinção da Ancine, órgão regulador do setor. No fim, o que de concreto se anunciou foi a transferência de outro órgão, o Conselho Nacional de Cinema (CNC) para a Casa Civil. E a futura transferência da Ancine, do Rio para Brasília.
Não é pouca coisa e ninguém se sentiu lá muito aliviado com isso. A distribuição das cadeiras do CNC mudou e a representação dos cineastas no órgão esvaziou-se, assim como da sociedade civil. Ministros do porte intelectual de Moro, Weintraub e Ernesto Araújo decidem sobre os rumos do audiovisual no país. Só falta a ministra Damares Alves também dar pitaco sobre cinema. A decisão de levar a Ancine para Brasília nada teria de de mal, a não ser pela sinalização de que Bolsonaro pretende ter os órgãos financiadores próximos de si – para melhor controlá-los.
Para que não houvesse dúvidas, avisou alto e bom som que filmes como Bruna Surfistinha não deveriam ser feitos com dinheiro público. Ou seja, anunciou, sem mais, que haverá controle sobre o conteúdo das obras. “Se não puder colocar filtros na Ancine, vamos extingui-la”, disse Bolsonaro. Entenda-se: filtros ideológicos e/ou morais. É uma aberração. A disputa por verbas públicas deve se dar através de quesitos técnicos – roteiro, proposta de desenvolvimento, currículo do diretor e produtor, etc. Colocar o conteúdo em questão – tal assunto pode ser tratado, aquele não – é próprio de governos autoritários, de direita ou de esquerda. É censura, pura e simples.
A ser implementado, esse “filtro” ameaça a diversidade da produção nacional, que pode ser criticada sob vários aspectos mas não por sua variedade. Há, todos os anos, filmes para todos os gostos. Filmes populares, religiosos, neo-chanchadas de sucesso, documentários sobre todos os temas, filmes trans e de gênero, filmes de prestígio internacional como Bacurau e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, ambos premiados em Cannes e ainda inéditos no país.
Tem gente que não gosta de cinema brasileiro e sequer se dá ao trabalho de ver os filmes para emitir opinião. É o caso de parcela significativa da classe média – a mesma que, provavelmente, votou em Bolsonaro e gente como ele para deputado e senador. Mas há outra parte que vai conferir os filmes. Gosta de uns, não gosta de outros, o que é normal. O grande problema do cinema brasileiro atual é o distanciamento do público popular, seu tradicional aliado, afastado das salas por razões econômicas. Ir ao cinema tornou-se diversão cara. Muito mais ainda em meio a uma crise econômica que penaliza os mais pobres.
Para nós, críticos, que vemos tudo, é forçoso constatar que, chegando ao mês de dezembro, teremos ao menos uns dez filmes muito bons para escolher entre os melhores. Não é pouca coisa, junto com o reconhecimento internacional. A revista Cahiers du Cinéma, a mais prestigiosa do gênero, vai dedicar um dossiê especial sobre o cinema brasileiro em sua edição de setembro. Tudo isso é fruto de muito trabalho.
Cabe lembrar que este resultado todo é mais um capítulo das relações entre cinema e Estado no Brasil, com a particularidade de se dar no quadro de um governo disruptivo, que escolheu a cultura, a imprensa e a universidade como seus inimigos figadais.
O atual sistema – capaz de produzir cerca de 150 longas-metragens por ano – é fruto de uma construção de quase 30 anos. Ela começa, tem seu grau zero quando Fernando Collor extinguiu a Embrafilme, o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro. Sem qualquer suporte, a produção nacional praticamente parou e só volta a funcionar no período chamado de Retomada, com novas leis de incentivo, em primeira instância baseadas no mecanismo de renúncia fiscal.
A Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) fora criada em 1969, vale dizer, em plena ditadura militar, na vigência do AI-5. Em 1975 a política para o cinema foi redesenhada, no que se convencionou chamar de “Segunda Embrafilme”, alinhada à política econômica de substituição de importações colocada em prática pelo ministro Reis Veloso. Chega a ser constrangedor reconhecer na ditadura militar um projeto estratégico para o país, inexistente no atual governo. Durante os anos 1970, o cinema nacional chegou a ocupar 35% do mercado interno.
Enfim, destruído por Collor, o mecanismo de financiamento do cinema foi refeito em 1993, durante o governo Itamar Franco, com a Lei do Audiovisual, e reforçado em 2001 pela criação da Ancine, no governo Fernando Henrique Cardoso. Esses mecanismos, por certo imperfeitos e cheios de contradições, têm, no entanto, o objetivo de desenvolver o audiovisual nacional e torná-lo sustentável. Em 2011 conseguiu-se a regulação da TV por assinatura, prevendo um determinado número de horas de conteúdo nacional. Tudo isso ainda é muito embrionário e enfrenta interesses econômicos muito fortes, ainda mais sob o novo clima político ultraliberal (no plano econômico) desenhado pelo governo Bolsonaro.
Muito havia ainda por fazer. Mas, por certo, o melhor caminho não é o da desidratação dos órgãos responsáveis pelo audiovisual brasileiro e menos ainda sua extinção. Nesse sentido, a lição do governo Collor é muito instrutiva. Não adianta extinguir órgãos de apoio a pretexto de dar um “choque de mercado” ao setor. Menos ainda subordiná-lo a modulações de conteúdo e outras extravagâncias conservadoras, típicas de estados autocráticos. É muito difícil fazer a roda voltar para trás. Mas, reconheçamos: o governo está se esforçando nesse sentido.
A propósito: lançado em 2011, Bruna Surfistinha levou quase 2,2 milhões de pessoas aos cinemas.