GRAMADO – Na apresentação de Veneza, seu segundo filme (o primeiro foi Polaroides Urbanas), Miguel Falabella leu um documento assinado por 67 entidades em defesa do cinema, atacado e ameaçado pelo governo federal. Era a realidade, essa terrível realidade política que se abateu sobre o país e literalmente o está deixando em chamas.
Em seguida, vem o filme – e aí entramos no domínio do sonho, mas ainda não de forma imediata. Carmem Maura faz uma mulher idosa, dona de bordel, cega e à beira da morte. Amada por suas “meninas”, ela revela seu último sonho: conhecer Veneza e lá encontrar seu amor de juventude.
Na maneira como o senti, o filme demora a engrenar, mas essa espera, na verdade, prepara um desfecho glorioso. Impossibilitadas de levar a Gringa (Maura) à cidade italiana, as mulheres (Dira Paes, Carol Castro, Danielle Winits) e o homem do bordel, Tonho (Du Moscovis), preparam uma “viagem possível”, no plano do imaginário, para satisfazer o desejo da velha senhora.
O filme é baseado na peça Venecia, de Jorge Accame e, deve-se dizer, escapa à dimensão teatral, virando cinema pela magia da fotografia de Gustavo Habda, um craque.
É curioso como aproxima duas dimensões do sonho, duas artes antigas, a do bordel e a do circo, nos quais a imaginação tem papel tão fundamental. Afinal, é pelo circo que a dona do bordel poderá realizar seu desejo. No fundo um desejo terminal, o de conhecer uma cidade que é também a dos sonhos, Veneza, e o reencontro (impossível na realidade) de um amor rompido há mais de 50 anos. Essas confluências todas, juntadas no final, e ao som de E Lucevan le Stelle, da Tosca, de Puccini, colocam o filme num patamar que não poderíamos prever em seu início hesitante.
Estrangeiro
Muito bom e impactante o chileno Pedro Bomba, de Juan Cáceres, sobre a questão dos imigrantes. Steevens (Steevens Benjamin) é um imigrante haitiano em Santiago. Discriminado e humilhado, ele perde a cabeça e agride o patrão (Alfredo Castro). Sua situação se complica e ele vegeta em subempregos e à falta de moradia e documentos. Diz o diretor que o filme não tinha roteiro. A história ia se fazendo, com a câmera na mão, à medida em que penetravam na saga do personagem – ele próprio um imigrante e que de fato vivenciou as situações vistas no filme.
Curtas
A Ética das Hienas, de Rodolpho de Barros, começou a ser pensado em 2014 e foi crescendo à medida em que a realidade brasileira foi se deteriorando, com o golpe de 2016 e a posterior eleição de Bolsonaro. A fragilização das relações entre trabalhadores e empregadores está no centro desse filme que fala do operário (Servílio Holanda) que tenta processar a empresa por um acidente de trabalho. Acordos fraudulentos entre advogados e empresários mostram qual é a parte mais fraca do processo. E cada vez mais fraca.
Sangro, de Tiago Minamisawa, Bruno H Castro, Guto BR (codireção), é uma curiosa e emocionante animação, que trabalha o relato de um soropositivo sobre intervenções nas imagens de O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch.