VITÓRIA/ES
Alice é uma youtuber adolescente. Faz sucesso na rede e mora na praia de Boa Viagem, no Recife, com o pai. Razões profissionais os levam à mudança para uma pequena cidade no Sul do país. Alice, num local mais conservador, será confrontada com vários problemas, a começar pelo bullying na escola e o sentimento de inadequação social.
A história do longa Alice Júnior, que poderia ser banal, ganha tom de originalidade pela maneira como é contada, com constantes intervenções gráficas, à maneira de emojis, memes e outros recursos da era da internet, que interagem com a narrativa. A fotografia é, de modo geral, clara e viva, embora evolua ao longo do desenvolvimento da narrativa. A ambientação torna-se um tanto kitsch e carregada, a atmosfera social é a de adolescentes ligados em seus smartphones full time.
Mas o grande trunfo, sem dúvida, é a atriz que interpreta Alice, Anne Celestino Mota, cheia de graça, espirituosa e vivaz. Ela se adequa à perfeição àquele ambiente imagético proposto pelo filme. Ou, talvez, seja ela quem tenha determinado esse ambiente por seu tipo de personalidade extrovertida.
“Queríamos fazer um filme político, mas que essa política viesse em camadas delicadas”, disse o diretor Gil Baroni no debate. A questão delicada é, de certa forma, a relação entre Alice e seu pai. Ela é totalmente apoiada, uma garota trans privilegiada, branca e bonita. Jean Genet (interpretado por Emmanuel Rosset ) é, para resumir, o pai que toda a trans sonharia ter. Suporte permanente, aberto,
compreensivo, acolhedor e bastante ativo na proteção à filha. Há uma cena em que ele aciona por Skype a advogada para que esta enfrente a diretora da escola onde Alice Jr. está sendo discriminada.
Há um detalhe. Num raro momento em que a questão da linguagem cinematográfica entrou em pauta no debate, o roteirista, Luiz Bertazzo, citou uma frase, cuja origem ele não soube precisar: “Quem domina a linguagem, domina o conteúdo”. Dessa forma, ele conta, precisou comprar um celular novo, baixar todos os apps usados pelos jovens e se familiarizar com o internetês. A ideia é que, se não incorporassem essa linguagem ao filme, ele falharia em seu projeto. Bem, compreendo isso. Também não sei quem falou ou escreveu a tal frase. Mas ela se parece muito com aquela, famosa e mais sintética, de Marshall Macluham, de antes da invenção da internet: “o meio é a mensagem”.
Isso para dizer que, se Alice Júnior. se beneficia muito da imersão nessa linguagem da web, ele também se recusa a fazer sua crítica. Entendo também a opção. Trata-se de seguir um período de vida de uma adolescente trans e sua luta para ser feliz e dar um passo em sua identificação sexual ao desejar algo tão singelo quanto o primeiro beijo. Uma busca afirmativa que, por um momento, esquece o contexto de luta em que estamos metidos e a dura realidade de sabermos que o Brasil é um dos países com maior número de assassinatos de pessoas transgênero. Mesmo na guerra, é preciso repousar – isso é
compreensível e me parece bastante verdadeiro. Mas, em termos estéticos, limita o alcance da obra. Esta, a obra, não repousa.
Enfim, Alice Júnior é uma fábula feliz, sabendo-se que toda felicidade deve enfrentar obstáculos até ser atingida. O filme foi ovacionado pela plateia do Cine Glória, mesmo porque joga com a catarse e entra em sintonia perfeita com a vibe do festival.
Curtas
Alguns bons curtas surgiram nesta última seção do evento a eles dedicada:
Quando elas Cantam (SP), de Maria Fanchin, mostra o encontro de mulheres no projeto Voz Própria, em que a música é utilizada como ferramenta na ressocialização de mulheres presas. O projeto foi interrompido após o golpe de 2016 e agora, sob Bolsonaro, nem se pensa mais nesse tipo de iniciativa humanista.
Sobrado (SP), de Renato Sircilli, é um interessante filme de suspense que tem como ideia inicial o conto de Julio Cortazar, A Casa Tomada. Quatro jovens se encontram em uma casa que vai sendo aos poucos ocupada de maneira misteriosa. Depois, a história toma um rumo diferente, e mantém a tensão.
O Pássaro sem Plumas (ES), de Tati Rabelo e Rodrigo Linhales, através de duas crianças, aborda as questões de gênero na década de 1980.
Cor da Pele (ES), de Livia Perini, interessante documentário ocupa-se de uma família composta por mãe e cinco filhos, dois deles negros e três albinos. Moram em Olinda, cidade de insolação constante, o que constitui desafio extra para os albinos e o perigo de sua exposição ao sol. Kauan é um desses garotos e domina o filme por sua vivacidade, inteligência e carisma.
——————————————————————-
Hoje à noite, no Cine Glória, será apresentado o último longa do festival, o documentário Casa, de Letícia Simões. Como já vi esse filme no Olhar de Cinema, em Curitiba, transcrevo abaixo a crítica, pois não sei se terei oportunidade de voltar a ele. Após a exibição de Casa, serão conhecidos os premiados desta 26ª edição do Festival de Cinema de Vitória.
Casa
A diretora Letícia Simões diz que “Casa” sempre foi o título de trabalho para seu filme. E terminou sendo o título definitivo. Casa é mesmo o “tema” oculto nesse filme de procura, ou de reencontro, se se quiser, do seu lugar no mundo. Fala do relacionamento exasperado da diretora com sua própria mãe, com quem deseja se reencontrar. A mãe também mantém um problemático relacionamento com a sua própria mãe, a avó da diretora.
Ou seja, são disfuncionalidades em cadeia, construídas de geração em geração. Nada de novo, em tese. Mas, convém lembrar Tolstoi, em Anna Karenina: “Todas as famílias felizes são iguais; as famílias infelizes o são cada qual à sua maneira.”
E, dessa maneira, articulando suas lembranças, da casa em Itaparica onde foi feliz, às fotos guardadas pela mãe como num relicário (os “arquivos implacáveis”), Letícia vai tecendo seu delicado rendado de relações familiares insondáveis e problemáticas. Como as de todos nós, mas com seus toques de singularidade: a árvore genealógica que se constrói com a antepassada escrava, o bisavô português, o cangaceiro egresso do bando de Lampião…Um mundo de machos, mas agora, no Brasil novo da quarta onda feminista, recentrado em figuras femininas. Passa por aí um pouco da genealogia complexa do povo brasileiro,
heteróclito, violento, terno, e, não raro, negador de suas origens.
Casa é um filme que entrega muito mais do promete em seu início. Ao falar da singularidade de sua família, Letícia Simões faz com que nos lembremos da nossa própria, também complexa, contraditória, enredada, entretecida de ódios, rivalidades, ressentimentos e afetos.
Contraditória configuração humana, a família, esta “viagem através da carne”, como dizia Carlos Drummond de Andrade.