Martin Eden é um jovem pobre e inculto que deseja tornar-se escritor. Essa a linha geral do romance de mesmo título de Jack London (1876-1916), agora adaptado para o cinema pelo italiano Pietro Marcello.
Eden é vivido por Luca Marinelli, vencedor do prêmio de melhor ator no Festival de Veneza, no qual o filme concorreu. De fato, é um ator incrível, com um trabalho visceral na construção do personagem atormentado de Eden. Este é considerado o livro mais autobiográfico de Jack London, que teve uma vida aventureira e curta. Seus livros tornaram-se objetos de estima de várias gerações e são reeditados até hoje. Em especial, os ambientados no Alasca, como O Chamado da Floresta e Caninos Brancos. Atualmente está em cartaz uma nova versão de O Chamado da Floresta, com as aventuras do cão Buck e Harrison Ford no papel de Jack Thornton, uma das personas de London.
No entanto, é em Martin Eden que somos colocados mais próximos de sua vida, das aspirações e as contradições de London, embora seja um livro de ficção e não uma autobiografia.
A opção de Pietro Marcello é colocar a trama num tempo histórico um tanto indefinido. Com cenas filmadas em 16mm, dá um ar retrô a imagens dos bairros populares de Nápoles e seus habitantes. Há ecos de lutas operárias das primeiras décadas do século, mas também imagens mais contemporâneas. As questões que atormentavam Eden (e London) continuam a pulsar através dos tempos. Não estão datadas porque as contradições das quais nasceram não foram resolvidas. Mescla também à narrativa algumas cenas documentais, preciosidades de arquivo como as imagens em movimento do anarquista Errico Malatesta nas manifestações de 1º de maio na cidade de Savona, em 1920.
No princípio da história, Martin vive na casa da irmã casada, na companhia de um cunhado que o detesta. Por um desses acidentes da vida, socorre um jovem que está sendo agredido por um brutamontes no cais do porto. Em reconhecimento, o rapaz o leva para conhecer sua família. Ocorre que se trata de uma família de classe alta, rica, culta, refinada, ligada às artes. E cuja filha, Elena (Jessica Cressy) é dona de uns olhos azuis que fazem Eden sentir-se no paraíso. Sabe que existe um abismo social entre eles. Coloca-se como missão pessoal instruir-se, educar-se, em suma, “ser como eles”, como não cansa de dizer.
Essa idealização burguesa está no centro do motor motivacional que alimenta o esforço de Martin. Devora livros, estuda de maneira um tanto caótica e escreve com fúria, ao mesmo tempo em que trabalha até o esgotamento em navios ou como operário em uma fundição. Representa, nesse sentido, a classe operária em seu desejo de ascensão.
Mas seu esforço para ser um escritor publicado se dá num contexto de lutas sociais e ideias conflitantes. Briga com a família de Elena e com ela própria. Aproxima-se de um poeta socialista mas, leitor de Herbert Spencer, não consegue aderir às ideias socialistas ou comunistas. Acredita no indivíduo, não na classe social ou no conjunto da sociedade. É um feixe de contradições, tornadas explosivas e incontroláveis justamente no momento do triunfo. Porque, pela sua trajetória, vencer, naquele tipo de sociedade, equivale a perder-se de si mesmo. Ele não deixará de perceber a nota trágica que acompanha todo sucesso pessoal desse tipo.
Com seu vai e vem no tempo, seu tom às vezes francamente documental e, sobretudo, pela atuação notável de Luca Marinelli, Martin Eden torna-se um filme vibrante. Contém romance e seu contrário, a solidão e o sofrimento. Fala da força de vontade e da energia de um talento selvagem ao se afirmar. Ao mesmo tempo, parece mostrar a inutilidade de toda ambição quando o homem se descaracteriza.
Martin Eden é também um filme de ideias, debatidas não de maneira fria, mas no calor impresso à narrativa. O pensamento individualista versus as teses sociais, o liberalismo das elites e as lutas de comunistas, anarquistas e socialistas, as guerras e as fraturas da sociedade italiana – tudo isso está lá, nessa história apaixonante.