
Leio hoje no Libération uma entrevista com o filósofo alemão Harmut Rosa https://www.liberation.fr/debats/2020/04/22/hartmut-rosa-nous-ne-vivons-pas-l-utopie-de-la-deceleration_1786079. O título da matéria já contém sua afirmação polêmica: “Não estamos vivendo a utopia da desaceleração”.
Sim, porque existe um sentimento de que, compulsoriamente confinados, teríamos, ao menos, mais tempo para nos dedicarmos à família, aos livros, aos cursos online, etc. Como férias forçadas, nas quais teríamos pleno acesso a tudo que o mundo nos oferece mas que, em tempos normais, não nos encontramos em posição de usufruir.
No entanto, parece acontecer o contrário. Angustiados por motivos bem reais (medo da doença, perda de emprego, perda de renda) acabamos por nos enfiar de cabeça em tudo que existe de disponível – ebooks, streaming, cursos à distância, distrações de toda sorte. Vamos aprender piano, esgotar o catálogo da Netflix, terminar a leitura do Ulisses interrompida há 20 anos e começar Em Busca do Tempo Perdido e Guerra e Paz. A atividade frenética funciona como anestésico, mas acabamos estressados com tantas tarefas auto impostas e a hiper oferta digital, turbinada ainda mais em tempos de covid-19.
Rosa não é o primeiro a se preocupar com as consequências da aceleração doentia da vida contemporânea. Como Domenico de Masi, e sua teoria do ócio criativo, muitos outros autores andaram escrevendo sobre a necessidade de diminuirmos o ritmo e caminharmos, digamos, em escala mais humana.
No entanto, toda a lógica do crescimento vem presidindo a economia mundial há dois séculos baseia-se no crescimento contínuo. A nossa é a lógica da velocidade, conforme o filósofo francês Paul Virilio.
Não se muda um dogma de uma hora para outra. É dado de barato que as economias dos países (o PIB) têm de crescer a taxas pelo menos proporcionais ao aumento da população. Caso contrário, estariam encolhendo. Indo para o buraco. Não existe ponto de estabilidade. Ou se cresce, ou se decresce.
Rosa usa a metáfora da bicicleta. Você só tem estabilidade em movimento. Quanto maior a velocidade, maior o equilíbrio. Se parar, cai. No entanto, maior a velocidade, maior também a probabilidade de acidente.
Além dessa hiperatividade dos confinados, há os que tiveram sua carga de trabalho dobrada ou triplicada com a pandemia. O pessoal da saúde, bombeiros, policiais, empregados de serviços básicos, etc. Em muitos países, trabalhando ainda em condições precárias, como é o caso do Brasil.
De modo que a tal desaceleração forçada parece mais ilusória do que real. Vivemos sem tempo e em angústia no interior de nossas casas, cumprindo quarentena. Quem está sob regime de home office já descobriu, talvez com surpresa, que trabalha mais em casa do que quando tinha de ir ao escritório. E ainda tem o salário reduzido! Todos anseiam voltar para uma “normalidade” que já era de todo insatisfatória para a maioria das pessoas.
Claro que todos aspiramos ter nossas vidas de volta, por problemáticas que elas fossem. Queremos voltar a circular pelas ruas, trocar abraços e beijos, viajar, ir ao cinema, a restaurantes, etc.
Isso virá. No entanto, esse tranco talvez pudesse nos servir de advertência que estávamos correndo de maneira meio desordenada, sem saber para onde ir, um pouco como aqueles hamsters que correm freneticamente naquelas rodas sem sair do mesmo lugar.
Toda uma mudança de mentalidade seria necessária para recalibrarmos nossas vidas de maneira mais racional e satisfatória.
Mas o cético que mora em mim adverte para não esperar por transformações tão radicais, mesmo quando 10 em 10 celebridades declaram aos jornais que “nada será como antes”.
E por que não seria? Vocês acham que as empresas que amargaram prejuízos imensos durante o confinamento vão se conformar com as perdas e dizer ao público: ok, vamos diminuir o ritmo? E os acionistas, como ficam? E as Bolsas, e o capital financeiro, e a especulação imobiliária? Vão se domesticar, domar o “instinto animal” que consideram o impulso principal do “progresso”?
Sinto muito, mas não vão fazer nada disso. Vão correr atrás do prejuízo, com sangue nos olhos, podem apostar. Se transformação houver, virá de nossa parte. De algum exame de consciência que nos faça distinguir o importante do desnecessário e concentrados no essencial. Preciso de tantos gadgets eletrônicos, de tanta roupa, de tanta viagem? Precisamos de tanta informação ou seria melhor ter informação de mais qualidade? Talvez seja hora de jogar cargas ao mar, no sentido literal e no figurado.
A pós-pandemia ainda é um jogo a ser jogado. Mas já pode ser pensado a partir de agora, quando e se tivermos tempo livre para pensar em nossas exaustivas maratonas de quarentena.