Outro dia, Ricardo Kotscho descreveu em seu blog a situação trágica do Brasil: em meio a uma pandemia, não temos governo e não temos oposição.
Verdade pura. O Coronavírus chega a um país completamente despreparado para lidar com uma emergência desse tipo. As mortes já passam de 11 mil e tendem a subir. O governo não se ocupa de nada, a não ser de montar um autogolpe para instaurar um Estado autoritário. A oposição omite-se, assim como o Congresso e o Supremo. Nós, a sociedade, vivemos à mercê dos fatos.
No entanto, segundo as pesquisas, somos muito mais do que a minoria fanática que apoia o candidato a ditador. Quem nos representa? Neste momento, nada e ninguém. Estamos sós, batendo panelas em nossas varandas, xingando ou chorando nas redes sociais. Quem nos ouve, senão nós mesmos?
E, mesmo assim, estamos divididos.
Outro dia, Lima Duarte divulgou um vídeo em homenagem ao seu colega morto, Flávio Migliaccio. Na parte mais tocante, citava Brecht, de Os Fuzis da Senhora Carrar: “os que lavam as mãos o fazem numa bacia de sangue”. Em situações-limite, os “isentos” são também criminosos.
O vídeo viralizou e emocionou muita gente. No entanto, nas redes foram exumadas declarações de Lima Duarte contra Lula e Dilma. Como se estas pudessem ou devessem enfraquecer ou relativizar o libelo de Lima ao dizer “Eu te entendo, Flávio Migliaccio!”.
A carta deixada por Migliaccio não foi uma mera carta de suicida. Foi uma denúncia, uma acusação contra o insuportável estado das coisas no Brasil atual. É um documento que pertence não apenas à família do ator, mas a todos nós, brasileiros, e nos faz refletir sobre nossa condição.
Lima Duarte ficou tocado com a morte do amigo e com o bilhete deixado, e gravou o vídeo. Será que importa, neste momento, pensar que as posições políticas de Lima não se alinharam com as nossas no período recente?
Claro, entendo perfeitamente e partilho da ideia de que sofremos um golpe parlamentar em 2016 e esse golpe produziu anomalia tamanha no país que acabou por conduzir um extremista de direita ao poder. 2016 é o grande trauma da nossa geração, completado em 2018, e de consequências ainda indefinidas. Por certo consequências enormes e negativas, colocando todo o futuro do país em questão. É uma ferida que se recusa a cicatrizar.
E, no entanto, precisa cicatrizar para que haja um consenso mínimo entre a parte civilizada do país, quaisquer que sejam nossas diferenças. A omissão da classe política, o calculismo cauteloso do Congresso, o temor cúmplice do Supremo nos deixam muito sós neste momento. É mais do que chegada a hora de deixarmos de lado mágoas antigas e recentes e nos alinharmos em torno de um marco civilizatório mínimo. Fazermos desta solidão uma força.
Dialogar com a parcela da sociedade que apoia fanaticamente Bolsonaro é esforço inútil. Energia jogada fora. Essas pessoas, por motivos variados, estão aquém ou além de qualquer argumentação ou evidência empírica. O país está dividido em partes que não se comunicam a não ser para se hostilizar. É um fato e digo isso com pesar.
O que nos resta? Isolá-los. E, para fazer isso, precisamos nos unir, mesmo quando as diferenças entre nós pareçam enormes. E de fato são. Mas não são tão grandes quanto alguns consensos possíveis. A saber, a defesa da democracia, a aspiração a uma sociedade mais justa, respeito aos direitos humanos, repúdio ao racismo, ao sexismo e a qualquer tipo de discriminação. E vai por aí.
Se conseguirmos estabelecer esse marco civilizatório mínimo, veremos que somos muito mais do pensamos ser. E, talvez, minimamente unidos, possamos pressionar por maior e melhor representatividade política e jurídica. Quando a sociedade civil se une, a classe política busca respostas, até por instinto de sobrevivência.
É sonho? Talvez. Mas, como estamos no fundo do poço, não custa nada sonhar. E talvez saia alguma coisa deste sonho. Quando o movimento pelas Diretas começou também parecia um sonho de malucos. Mas foi um momento em que as forças civilizadas da nação conseguiram se unir, insisto, apesar de suas diferenças. Esse marco civilizatório, que ajudou a pôr fim à ditadura, deveria nos inspirar nesta que é a hora mais obscura da nossa história recente.