Em sua participação no debate, o cineasta Felipe Bragança diz algo como (a citação não é literal): temos a ilusão de viver no presente, mas quando se abre uma fresta podemos ver que vivemos no passado e, talvez, também no futuro. O comentário vem a respeito do seu longa Um Animal Amarelo, terceiro concorrente brasileiro em Gramado. É dita a propósito não apenas do filme, mas da época histórica em que este vem à luz.
O “herói” é Fernando (Higor Campagnaro), cineasta falido de 33 anos, que tenta fazer um filme e embarca numa viagem pelo Brasil, Portugal e Moçambique em busca de pistas sobre suas raízes familiares, em especial de um avô de passado aventureiro e violento. Bragança, de maneira certeira, chama Um Animal Amarelo de “tragicômica farsa tropical”.
Na pergunta que enderecei a ele durante o debate chamei o filme de rapsódico, fragmentário, um tanto melancólico e auto-reflexivo, indagando se a forma teria algo a ver com a nossa contemporaneidade – brasileira e mundial.
De fato, sentimos a pulsação do longa bastante antenada e em ressonância com a nossa perplexidade presente. Nada nos preparava para esse grupo que agora ocupa o poder e para a parcela da população que o apóia. Vivemos, geração após geração, na ilusão de um Brasil cheio de contradições porém amigável.
O Brasil cordial (no sentido corrente, não no buarquiano), generoso, acolhedor, inteligente, sagaz, hospitaleiro, criativo, sede de uma democracia racial que deveria ser exemplo ao mundo – esse país maravilhoso, o nosso querido patropi, cheio de ginga e ritmo, simplesmente não existe. Nós o criamos e nos deleitamos com nossa criação. E o vendemos alegremente e com orgulho aos nossos clientes internacionais. Com Bolsonaro, Damares, Araújo, Heleno, Guedes, Salles e tutti quanti, caímos na real. Dói.
E é a partir dessa ferida narcísica que começamos a repensar o país. Não para recair no antigo “complexo de vira-latas” rodriguiano, mas para repensar em termos mais realísticos nossa condição histórica. Um Animal Amarelo, assim como o concorrente que o antecedeu, Todos os Mortos, são parte desse processo de trabalhosa recalibragem em nossa auto-imagem.
De certa forma, o cineasta Fernando é uma espécie de Macunaíma às avessas. O original, criado por Mário de Andrade, e transposto para a tela por Joaquim Pedro de Andrade, era o herói sem nenhum caráter, síntese cultural e racial do país, tanto assim que interpretado sucessivamente por Grande Otelo e Paulo José. No final, a Iara o devora, mas esse herói picaresco era representante de um país que tinha projeto, no caso modernista. Projeto que incorporava forças nativas à herança europeia para, na síntese, gestar algo original e legar essa herança ao mundo. Seríamos, como dizia Darcy Ribeiro, uma “Roma tropical, lavada em sangue negro e lavada em sangue índio”.
O Macunaíma de Um Animal Amarelo é o anti-herói de um país cujo projeto fracassou. Fernando vaga sem rumo pelo mundo, de mulher em mulher, de país em país, recolhendo as heranças do colonialismo, da escravidão, do racismo e outras formas de violência, envolvendo-se em tráfico de pedras preciosas, até regressar ao torrão natal para fazer o seu filminho, que é na verdade sua grande ambição. Não devemos lamentá-lo, mesmo porque seu registro no filme é auto derrisório. É a situação em que cada um de nós se encontra, cuidando de nosso jardim enquanto o mundo lá fora desaba.
Não gosto de tudo no filme, vejo pontos de oscilação lá e cá, e aspectos que não se conectam. O antinaturalismo do elenco às vezes pode pesar e o metacinema nem sempre funciona. Mas é ambicioso, no bom sentido, ao se instalar em regiões que ainda estamos aprendendo a reconhecer. E inegavelmente estimulante e importante para o debate em torno dessas questões angustiantes: Quem somos? O que poderemos ser?
Estrangeiro
A competição latina prosseguiu com Dias de Invierno (México), de Jaiziel Hernández. O filme registra um período de impasse em uma família. O jovem Javier trabalha como garçom num hotel, namora uma garota, mas seu verdadeiro sonho é mudar-se para os Estados Unidos, onde tem uma irmã. A mãe de Javier, uma mulher de meia-idade, perdeu o emprego e pretente vender uma casa da família, em Guanajuato, para resolver seus problemas de grana.
Trata-se de um filme discreto, em tom baixo, que flagra um momento de virada em personagens que nada têm de incomum. É gente como qualquer um de nós, com suas preocupações comezinhas, de amor, carreira, reconhecimento.
Não apresenta aquele vigor, às vezes brutal, que nos acostumamos a associar a determinado cinema mexicano. Evita clichês como a violência de determinadas regiões do país, dominadas por narcotraficantes. Apresenta um tom quase plácido e natural, que acaba por nos conquistar. O registro é o de cotidianos vazios, anti épicos, com personagens que sempre aspiram a alguma coisa a mais, dentro de suas possibilidades, sem qualquer delírio. Apesar de mexicano, lembra muito a estética sóbria e algo triste do bom cinema uruguaio.
Curtas
Blacklout (RJ), de Rossandra Leone mostra um Rio de Janeiro futurista, em que as forças de repressão tentam controlar a população servindo-se de alta tecnologia. Mas no fundo, nada mudou em 2048, e o racismo e machismo imperam. O tom no entanto é menos de denúncia de injustiças que de afirmação e enfrentamento, bem na linha contemporânea de autocrítica do vitimismo.
Atordoado, eu permaneço atento (RJ), resgata a figura do jornalista Dermi Azevedo, que resistiu à ditadura, foi perseguido e preso. O depoimento sobre o suicídio de um filho, maltratado quando bebê pela repressão policial, é comovente. O filme baseia-se no depoimento de Dermi, “coberto” por imagens muitas vezes nada óbvias, que produz surpresa e efeito sobre o espectador.