Gramado 2020: O mundo musical de Alcione


Quarto longa em competição, O Samba é Primo do Jazz’, de Angela Zoé, procura ser mais que uma cinebiografia da cantora Alcione Dias Nazareth.

O recorte conceitual do documentário nasceu por acidente. O filme era para ter o título de ‘Eu sou a Marrom’, mas a diretora descobriu que seria também o nome do show da cantora. E então não dava. Surgiu como alternativa o título de uma composição de Nei Lopes interpretada por Alcione. E o filme ganhou, desta forma, um contorno mais conceitual, um eixo musical que, diga-se, não é desenvolvido até onde se poderia esperar.

Em todo caso, nos revela uma Alcione que vai além da cantora romântica, faceta pela qual é mais conhecida hoje em dia. Maranhense, filha de pai musicista, Alcione foi educada na música. Aprendeu a tocar trompete, sabe ler partitura, conhece teoria musical. E é apaixonada pelo jazz.

Tanto assim que, quando Roberto Menescal a escalou como sambista, ela ainda não praticava o gênero. “Chegou à gravadora com aquele canto de garganta que lembrava o Louis Armstrong”, diz o bossa-novista, parceiro de Ronaldo Bôscoli e violonista refinado. A própria Marrom é vista interpretando Hello Dolly, um dos grandes sucessos de Armstrong em sua fase mais popular.

O documentário trabalha com entrevistas com Alcione, com seus músicos e parentes – diversas irmãs trabalham com ela, como back vocals ou a empresariando. Traz, também, farto e raro material de arquivo, mostrando Alcione em diversas fases de sua carreira. Deixa que a vida pessoal da artista seja filtrada com discrição e na palavra dela própria. “Não quiser ser invasiva”, diz a diretora.

O resultado é um documentário-homenagem a uma artista brasileira brilhante, mas cuja escolha de repertório às vezes deixa a desejar. O senso rítmico, o conhecimento de música, a voz toda particular, a memória mantida da cultura musical afro-brasileira do Maranhão são qualidades notáveis. Aliadas a um carisma inegável, fazem de Alcione uma das novas divas. E, sabemos e compreendemos, sempre é difícil fazer filmes sobre astros e estrelas, apesar de a diretora confessar que, de início, não era fã de Alcione.

Estrangeiro

El Gran Viaje al País Pequeño, de Mariana Viñoles, parece, à primeira vista, um documentário convencional. Acompanha a viagem de duas famílias de refugiados sírios, que emigram para uma terra distante e da qual pouco sabem chamada Uruguai, país presidido por José Mujica. As famílias são recebidas no aeroporto pelo próprio presidente e fazem os agradecimentos de praxe. Tudo parece se encaminhar para um desenvolvimento chapa-branca.

A surpresa – quase se pode dizer, o choque – acontece no meio do filme, quando a câmera começa a registrar o descontentamento dos imigrantes com o que encontram na nova terra. Algumas dessas queixas se tornam muito agressivas, como chamar do Uruguai de “tierra de ladrones”. Chocante e surpreendente que pessoas saídas de uma zona de guerra se manifestem dessa maneira sobre o país que os acolhe. Sentimo-nos incomodados. Imagine o que sentem uruguaios ao verem o filme.

Mas, por paradoxo, é esse traço dissonante que faz a riqueza do documentário. Este passa a expor, de maneira bastante direta, as dificuldades de adaptação que todo imigrante experimenta em terra estrangeira. “Contesta também a visão idealizada e autoindulgente que temos em relação ao país, visto por nós como um pequeno paraíso”, diz a diretora.

Esse tipo de “acidente de percurso” não é incomum no documentário, gênero mais aberto ao imprevisto que a ficção. Os “personagens” não se comportam como se espera, rebelam-se, e dizem ou fazem coisas à revelia das expectativas do cineasta. Boa parte da riqueza do gênero vem dessa intervenção criativa do acaso. Cabe ao diretor acolhê-la ou ignorá-la. Por sorte, Mariana Viñoles opta pela primeira alternativa.

Curtas

Wander Vi (DF), de Augusto Borges e Nathalia Brum, fala de Wanderson Vieira, habitante de Samambaia (cidade satélite de Brasília) e aspirante a cantor. A simpatia do personagem é o ponto forte do filme. Mas ficamos por aí.

Extratos (SP), de Sinai Sganzerla. A diretora resgata imagens da década de 1970, filmadas por Rogério Sganzerla e Helena Ignez, dos quais é filha. Dois ícones do cinema e da contracultura, Helena e Rogério foram forçados a deixar o país durante a ditadura militar. As imagens, em 16mm, são registros de sua estadia em Londres, Marrakech, Rabat, do deserto do Saara e também de Salvador e Rio de Janeiro. Em seu aspecto fragmentário e vintage, mais que diário de um casal bonito em processo de diáspora, são imagens de um tempo em que a ruptura com padrões convencionais de comportamento era vista como crime por governantes moralistas e sexualmente reprimidos. Meio assim como hoje.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.