Começa aqui a minha cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
E já inicia por um polêmico filme de abertura, Nova Ordem, do mexicano Michel Franco. O filme recebeu o Leão de Prata no Festival de Veneza e tem provocado discussões por onde passa. Inclusive em seu país de origem, onde tem sido acusado de fazer um retrato nada gentil das chamadas “classes subalternizadas” – para usar um vocabulário contemporâneo.
Bem, tudo é um pouco mais complexo. Em seu início, Nova Ordem -se, ocupa-se, de maneira bastante minuciosa, de um casamento da classe alta, a crème de la crème da sociedade local. Quer dizer, todos branquinhos, elegantes, bem falantes e cheios de dinheiro. E de cinismo. Os personagens de origem indígena estão na cozinha, dirigindo os carros dos convidados ou trabalhando como segurança. As usual, em nossas sociedades.
Tudo se transforma de repente, quando estouram motins em diversas partes da cidade, as forças armadas intervêm e se cria a tal da “nova ordem”, que, na verdade, é uma selvagem desordem. Um universo hobbesiano, em que lobo devora lobo, depois de traçar os cordeiros. Há estupros, assassinatos, execuções, sequestros, etc. A filmagem é crua; usa – e abusa – das cenas de violência.
Procuro ideias subjacentes à obra e encontro estas: a ordem atual, com suas pornográficas diferenças sociais, é insustentável. Vai estourar. E, quando estourar, virá talvez algo pior. Por certo mais truculento e tão injusto ou talvez ainda mais do que na ordem anterior. Estamos à beira do caos e não nos damos conta.
O curioso – se o termo cabe – é não mais se falar de uma violência revolucionária, como se fazia antigamente. Antes, imaginava-se que a injustiça social fosse parir, ainda que a custo de sangue, uma nova sociedade mais justa. Agora, não se acredita mais nisso. A violência gera apenas mais violência, numa espiral sem fim. Os velhos tempos eram utópicos; os novos, são distópicos.
De certa forma, como barômetro das atuais pressões sociais, Nova Ordem se aproxima de sucessos como o coreano Parasita ou o norte-americano Coringa. As desigualdades sociais levam à frustração, ao ressentimento e ao crime – para não dizer que levam ao fascismo, o que me parece uma decorrência lógica. Não há mais política. Apenas horror e violência.
A maneira de filmar de Franco também me intriga. A movimentação de câmera, a aproximação da lente nos momentos de maior truculência sugerem nem tanto a denúncia como o prazer da imagem cruenta. Lembra um pouco o que os críticos da política dos autores chamam de imagens abjetas, como o célebre plano sequência de Kapò, de Gillo Pontecorvo, denunciado no texto célebre de Jacques Rivette, De l’abjection.
Deus me livre do moralismo católico desse tipo de crítica. Mas, ao ver um filme como Nova Ordem, sempre me pergunto se se trata de uma denúncia do fascismo ou se leva o germe do fascismo em seu próprio DNA. Cabe ao espectador – e à crítica – discutir essa obra de fato controversa sob esse viés.
Outros filmes:
O Problema de Nascer, de Sandra Wollner (Áustria). Um filme bastante inquietante, me pareceu. Uma menina andróide vive com um homem a quem chama de pai. As memórias de ambos são compartilhadas e logo se descobre que se referem a um trauma familiar. As sugestões de pedofilia e incesto são mais que subliminares, porém se encaixam na história. Cinema que vai um pouquinho além do convencional permitido hoje em dia. Se Damares assistisse, mandaria proibir.
Mamãe, Mamãe, Mamãe, de Sol Berruezo Pichon-Rivière (Argentina). Também aqui se evocam traumas de infância. Uma garota que se afoga em uma piscina. Seguem-se o desespero da mãe, o luto, a presença da morte no imaginário das outras crianças da casa. Tudo num clima que remete aos trabalhos de Lucrécia Martel.
Kubrick por Kubrick, de Gregory Monro (França). O filme desenvolve-se em torno de uma rara entrevista gravada do diretor, concedida ao crítico francês Michel Ciment. É enriquecida por imagens raras do diretor, falando dos seus filmes, de sua concepção de arte e vida. Imperdível para fãs do autor de obras-primas como 2001 – uma Odisseia no Espaço, Barry Lyndon e O Iluminado.
Panquiaco, de Ana Elena Tejera (Panamá). Bastante surpreendente a história de Cebaldo que, como marítimo, trabalha numa embarcação portuguesa depois de ter estado em outros mares do mundo. De origem indígena, Cebaldo sente falta de seu país e empreende uma viagem espiritual de retorno às suas raízes. Filme espiritual, no melhor sentido do termo, mergulho documental/ficcional na ancestralidade dos povos originários da América.
Mosquito, de João Nunes Pinto (Portugal). O jovem Zacarias, de 17 anos, se alista no exército durante a 1ª Guerra Mundial. É mandado a Moçambique, então colônia portuguesa, para defender o país de possíveis ataques alemães. Zacarias se perde do seu pelotão e fica só, para tentar sobreviver em meio à solidão africana. Apanha malária e, em sua febre, não distingue realidade de alucinação. Nem o espectador, mergulhado neste mundo abissal e ambíguo, cheio de perigos e aventuras improváveis. Uma beleza de filme.
Como vocês sabem, a mostra será via streaming, com exceção de algumas exibições em drive-in. Para informações de programação e compra de ingressos, acesse 44.mostra.org.