A arte da crítica (22): A questão da autoria de um filme – o caso Cidadão Kane


Mank, a produção da Netflix, tem gerado muita discussão. Mas, até agora, que eu saiba, ninguém ainda debateu a questão do roteiro, que está no centro do filme de David Fincher.

Escrevi um texto sobre Mank, que você pode ver neste link. Portanto, me poupo agora de entrar em determinados detalhes.

Basta lembrar que se trata da famosa polêmica entre quem seria o verdadeiro “autor” de Cidadão Kane: se seu diretor, Orson Welles, ou seu roteirista, Herman J. Mankiewicz.

É uma polêmica já meio antiga no meio cinematográfico. Kane, aparentemente por razões mais políticas que artísticas, foi quase totalmente esnobado na premiação do Oscar em 1941. Indicado em nove categorias, emplacou apenas uma. Roteiro, justamente, e o prêmio foi dividido entre Mankiewicz e Welles. Ambos sustentam que são autores exclusivos do texto.

Welles é hoje considerado um dos gênios do cinema e Mankiewicz ocupa uma posição bastante secundária. O filme vem para tirá-lo do limbo. Interpretado por Gary Oldman, ele é o protagonista absoluto enquanto Welles faz uma ou outra aparição em cena, de maneira pouco significativa.

Não foi a primeira tentativa de reabilitá-lo perante a opinião pública cinematográfica. Em 1971, a crítica da New Yorker, Pauline Kael, escreveu um extenso ensaio – Raising Kane – defendendo a posição de Mank como autor. O artigo, de cerca de 100 páginas (editado aqui pela Record com o título de Criando Kane) foi visto como um ataque injusto a Orson Welles, a pretexto de revalorizar o esquecido Mankiewicz.

Muita gente saiu em favor de Welles. Mas, a meu ver (e dentro do que conheço), a maior defesa é a de Robert L. Carringer em seu notável livro Cidadão Kane – o Making Of (aqui editado pela Civilização Brasileira).

E por quê usei o adjetivo “notável”? Bem, porque ao tom ensaístico e bastante subjetivo (mas muito bem escrito) de Kael, Carringer contrapõe uma proposta objetiva e bastante baseada em material de pesquisa empírica. Vai aos fatos e aos documentos.

A questão da autoria do roteiro na verdade ocupa apenas um dos capítulos do livro. Como o próprio subtítulo diz, Carringer pretende reconstituir todo o processo de construção de Kane, atentando, a cada capítulo, para um dos aspectos da “fabricação” dessa obra de arte singular, que é um filme de cinema.

Trata primeiro do projeto não realizado de Welles para a RKO, que seria uma adaptação do romance de Joseph Conrad, O Coração nas Trevas. Não foi realizado por uma questão de orçamento.

Depois, Carringer escreve o capítulo sobre o roteiro. O seguinte descreve a direção de arte de Kane. Depois vem o da fotografia, em que o grande personagem é Gregg Toland. Por fim, a pós-produção e o lançamento da obra, bastante prejudicada, como se sabe, pela perseguição do miliardário William Randolph Hearst, modelo de criação do fictício Charles Foster Kane.

Como Carringer pesquisa nos arquivos da RKO, pode dizer, com segurança, que a ideia é de Mankiewicz, que conhece pessoalmente tanto Hearst quanto sua amante, a atriz Marion Davies. Foi convidado a festas no castelo de Hearst, San Simeon – no filme rebatizado como Xanadu. Lá tomou seus porres. Mas também observou muita coisa.

Isolado num rancho da Califórnia, com a perna quebrada e assistido por uma enfermeira, um ajudante e uma datilógrafa, Mank escreveria duas versões do roteiro. Os esboços posteriores já não podem ser identificados tão facilmente quanto à autoria. E neles houve mudanças profundas em relação ao texto original. Qual a parte de Mank e qual a parte de Welles? Difícil determinar, e Carringer teve acesso a todas as versões do script, até que se chegasse ao roteiro final, aquele que seria de fato filmado.

No fim desse imbróglio, difícil de ser destrinchado, a partilha ficou assim, nos créditos do filme:

ROTEIRO ORIGINAL

Herman J. Makiewicz

Orson Welles

Cidadão Kane, depois do brilho inicial, ofuscado pela intervenção de Hearst, e a recepção pífia no Oscar, cai em relativo esquecimento. É “redescoberto” nos anos 1950. Nesse momento, ocorre uma valorização da figura do diretor, em especial por influência da crítica francesa, que coloca o diretor na posição suprema de “auteur” único de um filme. O nome de Orson Welles foi elevado aos píncaros, enquanto o de Mankiewicz foi sendo progressivamente esquecido. Mank morre relativamente jovem, em 1953, fim de uma vida caótica, atormentada por problemas com o álcool.

Ao escrever Criando Kane, Pauline Kael resolveu reabilitá-lo. Vale dizer que o texto tem também seu contexto no campo de batalha da crítica norte-americana, em que Kael colocava-se como arquirrival de Andrew Sarris, sendo este o introdutor da “politique des auteurs” francesa nos Estados Unidos.

Desse modo, Criando Kane era não apenas a reabilitação de Mank e ataque a Welles (não ao filme Cidadão Kane), mas tomada de posição crítica em relação a Sarris e à escola francesa de Bazin, Truffaut, Rohmer, Chabrol, Godard e Rivette, encastelados na mítica Cahiers du Cinéma. Rivalidade inscrita no campo cultural e que diz respeito a questões básicas de todo crítico: quem faz um filme? Quem está ou se sente autorizado a interpretá-lo, julgá-lo ou valorá-lo? De que materiais é feita essa obra de arte das imagens em movimento? Trata-se do trabalho de um só homem ou mulher? Ou é agenciamento de múltiplos trabalhos e saberes que se concretizam numa obra única? As respostas que dermos a essas perguntas por certo terão influência decisiva sobre o tipo de instrumento crítico utilizaremos na análise de um filme.

São questões talvez antigas, mas às quais devemos voltar, porque, de fato, pode ter havido, na época, e com extensão até hoje, uma hipertrofia da figura do diretor. “(…) os diretores eram foco das atenções da crítica, e filmes eram considerados estritamente como criações do diretor”, escreve Carringer (p.61). Ele nota, também, que Pauline, ao tentar reabilitar o nome de Mank, tornou-se a sua mais formidável e incondicional biógrafa: “Raising Kane é uma biografia imaginosa de Mankiewicz, onde este é tratado como um personagem de Dickens – um perdedor de bom coração, indisciplinado, e sempre envolvido em algum tipo de dificuldade, mas com uma sagacidade que é seu maior charme”.

No fim de suas pesquisas e das conclusões que delas tira, Carringer propõe uma solução salomônica que parece ser a mais próxima possível da verdade sobre o caso Kane:

“Resumindo: Mankiewicz (com auxílio de Houseman e dos dados fornecidos por Welles) escreveu os dois primeiros esboços. Suas principais contribuições foram o arcabouço da história, o rol de personagens, várias cenas individuais, e boa parte dos diálogos. Certas partes do roteiro de Victorville (nota minha: o rancho onde ele ficou isolado para escrever) já apresentavam, quase que em sua forma final, particularmente o início e o fim, o cinejornal, a sequência da sala de projeção, a primeira visita a Susan e o Colorado. Welles acrescentou o brilho da narrativa – a sagacidade visual e verbal, a fluidez estilística e toques de originalidade assombrosa, como a montagem do jornal e a sequência da mesa do café da manhã. Ele conseguiu transformar Kane de um retrato medíocre de Hearst numa personalidade de uma grandiosidade épica e misteriosa. Cidadão Kane é o único filme importante de Welles no qual o crédito do roteiro é compartilhado. Não por coincidência, é também, entre seus filmes, aquele que contém o enredo mais marcante, que apresenta os personagens mais bem elaborados e que tem os diálogos mais bem construídos. Mankiewicz deixou sua marca. Embora seu trabalho possa parecer algo convencional e insípido, em comparação aos brilhantes toques de gênio de Welles, na verdade teve importância capital para o projeto.” (Pgs. 63-64)

O que faz retornar à pergunta: o que resta do roteiro depois que ele vira filme? Objeto da linguagem, até certo ponto literário, em que medida participa dessa transmutação de palavra em objeto audiovisual?

À guisa de estímulo para discussão, relembro as conhecidas palavras de um dos mais extraordinários roteiristas, Jean-Claude Carrière, em seu livro Prática de Roteiro Cinematográfico (em parceria com Pascal Bonitzer, JSN Editora):

“…o roteiro represnta um estado transitório, uma forma passageira destinada a se metamorfosear e a desaparecer, como a larva ao se transformar em borboleta. Quando o filme existe, da larva resta apenas uma pele seca, de agora em diante inútil, estritamente condenada à poeira.” (p.11).

(Work in progress. Continua)

Leia a série completa de A arte da crítica

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