Os Arrependidos, de Ricardo Calil e Armando Antenore, foi o vencedor da competição de longas e médias brasileiras do É Tudo Verdade, em sua 26ª edição.
Na minha opinião, foi uma decisão acertada do júri. Numa competição de alto nível, havia outros “elegíveis”. Mas o júri percebeu que havia um filme especial, estimulante em particular pelo momento político que estamos vivendo, com alguns desvairados na rua pedindo a volta da ditadura. Ora, a grande sacada de Os Incompreendidos é mostrar que não existe nada pior do que uma ditadura militar. Num regime de exceção, sem garantias individuais, com a truculência, a chantagem e a tortura usadas como política de Estado, pode-se esperar o pior das pessoas. E, dentro dessa expectativa, às vezes surge o melhor. De qualquer forma, é o mais sórdido regime possível e esta afirmação aparece em todas as entrelinhas do filme. E nas linhas também.
Na parte internacional também prevaleceu a opção política e venceu Presidente”, da dinamarquesa Camilla Nielsson sobre o processo eleitoral no Zimbábue. O uso da violência e de baixos expedientes, assim como a falta de limites de certos políticos, são aspectos a serem destacados neste momento em que a corrosão democrática impera em alguns cantos do planeta. Um presidente desbocado, machista e boçal lembra muito…bem, vocês sabem quem. Também aqui havia opções, mas a escolha me pareceu correta.
Abaixo, a relação dos vencedores. E, depois da lista, repito a crítica de ‘Os Arrependidos’ para quem ainda não a leu.
OS VENCEDORES:
. “Os Arrependidos” (São Paulo), de Ricardo Calil e Armando Antenore – melhor longa brasileiro.
. “Presidente” (Dinamarca), de Camilla Nielsson – melhor longa internacional
. “Yaõkwa: Imagem e Memória”, de Rita e Vincent Carelli (Pernambuco) – melhor curta-metragem brasileiro. Prêmio Canal Brasil. Prêmio Mystica
. “A Montanha Lembra” (Argentina/México), de Delfina Carlota Vásquez – melhor curta internacional
. “A Máquina do Desejo – Os 60 Anos do Teatro Oficina” (SP), de Joaquim Castro e Lucas Weglinski – Prêmio Especial do Júri. Prêmio EDT de melhor montagem (para Castro & Weglinski)
. “Vicenta”, de Darío Doria (Argentina) – Prêmio Especial do Júri (melhor longa)
. “Ser Feliz no Vão” (RJ), de Lucas H. Rossi – Prêmio Especial do Júri, Prêmio EDT (melhor montagem/curta: Lucas H. Rossi)
Os Arrependidos
Não existe tema mais ingrato: documentar os ex-guerrilheiros que foram à TV e aos jornais renegar seu ativismo contra a ditadura militar. Esta é a proposta de Os Arrependidos, de Ricardo Calil e Armando Antenore. Ambos, na apresentação do filme, referem-se ao “incômodo” da tarefa. Para guiá-lo nessa selva escura, Calil se vale de um aforismo do pai de todos os documentaristas, Eduardo Coutinho: “Compreender as razões do outro, sem, necessariamente, lhe dar razão”.
Essa suspensão de julgamento moral não significa neutralidade, posição difícil de manter diante de um tempo tão conflagrado como foram os anos 1970, nos quais a história se desenrola. Mas permite escutar os personagens, sem estigmatizá-los a priori, como se deu, no calor da hora, entre a parcela da opinião pública oposicionista.
Vivia-se o governo do general Médici, reconhecidamente o mais violento e repressivo de todo o período ditatorial (1964-1985). Era tempo do AI-5 e da resistência armada em luta desigual contra o regime. Tempo dos porões da ditadura e da tortura institucionalizada (mas jamais assumida) como política de Estado.
Nesse contexto, alguns presos políticos se apresentam à televisão e concedem entrevistas aos jornais, confessando-se “arrependidos” de suas ideias e dos atos praticados. Qual o grau de “sinceridade” desses depoimentos? Renegaram, de fato, suas convicções, ou apenas estavam negociando vantagens ou simplesmente escapando da tortura?
O filme caminha atrás das respostas a essas perguntas. Procura pelos personagens e os entrevista. Fala com os que se dispõem a exumar fantasmas do passado. A maioria recusa-se a revisitar experiências tão traumáticas. Procura também resgatar a trajetória e motivações de dois deles, já mortos. Até 1975, cerca de 40 presos políticos fizeram esse mea culpa público, exortando os jovens a não seguir esse caminho e passando a elogiar o regime que antes combatiam.
O governo militar via nesses depoimentos uma justificativa para suas ações repressivas. Era importante também no campo internacional, na recorrente tentativa das ditaduras para se legitimar. Enfim, era uma operação tanto de propaganda quanto de guerra psicológica dissuasiva. Já para a esquerda, os “arrependidos” eram apenas traidores ou “desbundados”, como chamavam os que haviam trocado a luta revolucionária pelas dunas de Ipanema e as praias da Bahia.
Já o filme mostra a heterogeneidade desse grupo. Há os convictos, que dizem ter renegado suas ideias porque abriram os olhos para a realidade e viram seu erro. Um deles hoje escreve em órgãos de direita e chama o general Médici de “estadista”. Tanta zelo faz desconfiar de que talvez não tenha sido um simples arrependido, afinal de contas. Outros, como Celso Lungaretti, autor do livro-depoimento Náufrago da Utopia, admite ter feito a encenação para escapar à tortura.
Outro, Massafumi Yoshinaga, negociou a liberdade em troca do “arrependimento”. Livrou-se da tortura e da prisão, mas, parece, nunca se libertou de fato. Ex-militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), entrou em depressão e suicidou-se em 1976.
Manoel Henrique Ferreira conseguiu denunciar a farsa através de uma carta, que passava, aos pedacinhos, para fora da prisão. Morreu em 2014. A leitura da carta endereçada a Dom Paulo Evaristo Arns, por sua viúva, Graça Lago, é um dos momentos mais esclarecedores (e emocionantes) do documentário.
Filme incômodo, como reconhecem os diretores. Porém fundamental para a compreensão de um pesadelo histórico que pensávamos encerrado e sobre o qual ainda há muito a pesquisar. De certa forma, vivemos a tragédia política atual por não termos tido a coragem de exorcizar por completo o fantasma da ditadura. Ele voltou a nos assombrar.