Pode-se dizer que existe uma boa mentira, ainda mais em tempos das terríveis fake news, essa praga contemporânea? Para Ariano Suassuna, sim. Em imagens de arquivo, o grande dramaturgo e escritor paraibano (1927-2014) estabelece logo a diferença. Não elogia a mentira contada para prejudicar outra pessoa. Mas gosta do mentiroso que trabalha “por amor à arte”. Diz tudo entre risos, ele que foi o mais bem-humorado dos intelectuais brasileiros. Auto da Boa Mentira, de José Eduardo Belmonte, é baseado em causos do escritor, um invejável contador de histórias engraçadas.
O filme é dividido em quatro episódios.No primeiro, um indivíduo anônimo chega a um hotel onde se dá uma convenção. É esnobado por todos, até que a semelhança física com um grande comediante lá hospedado para um show o tira do anonimato. Leandro Hassum faz graça com sua própria persona artística, e com o comentário recorrente das pessoas de que “gordo, ele era mais engraçado”. Referência ao regime radical que enxugou a circunferência do ator. Tudo para ele fica azul e então, por bônus, ainda surge uma femme fatale chamada Caetana e vivida por Nanda Costa. Como termina? Não vou dizer. Vá e veja.
As outras histórias também parecem atraentes. Um rapaz vê no palhaço de um circo uma dúvida sobre a identidade de seu pai, já falecido. Nos morros do Rio, um guia inglês, metido a carioca, conta uma mentira inocente para se livrar do convite para o aniversário de um amigo. O fato, em aparência inócuo, dá origem a uma confusão dos infernos. No último, uma estagiária inventa uma história para sair da sombra durante uma festa da firma de publicitários. Basta dizer que o caso envolve ter ido ou não à Disney, uma obsessão brasileira.
Todas as histórias têm um fundo comum. Mostram como mentirinhas podem desencadear consequências enormes. Um pouco como o chamado efeito borboleta. Pela teoria do caos, o bater de asas de uma borboletinha no Oriente pode causar um tufão no Ocidente. Há um longa sobre isso.
Como em geral acontece com os filmes de episódios (mesmo quando dirigidos pela mesma pessoa), uns parecem melhores que os outros. Mas aqui existe uma certa uniformidade, garantida pela boa mão de um diretor competente. E que dá uma levantada, além da boa atuação do elenco, é a inspiração nas ideias de Suassuna, um dos mais geniais autores brasileiros, além de ser um sujeito muito engraçado. Em quatro causos de Ariano Suassuna, Helder (Leandro Hassum), Fabiano (Renato Góes), Pierce (Chris Mason) e Lorena (Cacá Ottoni), vivem situações diferentes nos quais a mentira é sempre a protagonista. Se não há grandes oscilações entre altos e baixos, a impressão que fica é de falta de um certo brilho. Aquele algo mais que distingue o bom do ótimo.
Talvez Auto da Boa Mentira não seja mesmo uma comédia para arrancar gargalhadas. O riso é mais contido que escrachado, e a inteligência aparece lá e cá. Os momentos de hilaridade, mesmo, são aqueles em que Suassuna aparece na tela contando suas histórias. O que seriam apenas ligações entre um episódio e outro acabam por roubar a cena.
Republicou isso em EREMITAHIGHTECHe comentado:
SIGA O ZANIN. CRÍTICO DE CINEMA DO MAIOR GABARITO. ELE COMENTA TODA SEXTA NO PROGRAMA BOM PARA TODOS DA TVT, ÀS 15 HORAS.
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