O Jardim Secreto de Mariana


João e Mariana vivem no Éden e não há serpente a tentá-los. Porém o idílio é perturbado pela impossibilidade de seguirem o preceito bíblico de crescer e multiplicar-se. Esse imaginário subtexto religioso bem poderia deixar O Jardim Secreto de Mariana um tanto anacrônico. Mas o diretor Sérgio Rezende (de Lamarca e Guerra de Canudos) lhe sopra ares de modernidade e o Adão e Eva que vemos na tela viram nossos contemporâneos.

Mariana (Andréia Horta) é uma bióloga, natureba convicta, unida ao economista João (Gustavo Vaz). A dificuldade, talvez impossibilidade, de terem filhos coloca o casal à prova. E, finalmente, desfaz a união.

No começo, o filme mostra apenas João, que sobe em sua bicicleta e dá início a uma longa viagem em busca da amada perdida, agora abrigada em Brumadinho, Minas Gerais. Ela dá aulas de reprodução floral em Inhotim, o paradisíaco parque artístico e jardim botânico construído em torno da cidade. Assim, a história toma ares de uma problemática tentativa de reconciliação após a separação traumática. Dificuldade intensificada pelos anos passados desde que se deixaram e os caminhos que então escolheram para seguir sozinhos.

A história, quase toda centrada nos dois personagens principais, tem presenças “externas” ao casal. A principal delas, a figura de Zé Cristiano (Paulo Gorgulho), pai de João. Ele é quem dá de presente o sítio que serve de paraíso terrestre para Mariana e João. Lá, ela cultiva flores, os dois se amam e vivem felizes. Mas a felicidade constante não é coisa deste mundo e vários fatores se somam para separá-los.

Privada desse primeiro paraíso, Mariana busca outro para refazer a vida, e o encontra em Inhotim, que passa então a dominar as locações da obra. Áspero às vezes, o filme mantém esse tom pastoril predominante.

Há ainda algo de mais sutil passando por essa história que às vezes pode parecer banal. Num mundo em crise, barulhento, feroz e competitivo, polarizado à loucura e insuportável, pode ser um bálsamo pensar que, em meio a tal ambiente inóspito, sempre temos a alternativa de cuidar do nosso próprio jardim. É uma metáfora poderosa, ocuparmo-nos de nós mesmos, das pessoas amadas e daquilo que gostamos de fazer, enquanto todo o resto nos desagrada.

Mas também refere-se ao real, pois o diretor Sérgio Rezende, ele próprio, é um cultor da jardinagem e até fez um filme muito bonito sobre o assunto, apropriadamente chamado de O Cinema É Meu Jardim.

Há uma semelhança entre o ofício da arte e o da jardinagem. Sempre existe algo por fazer em um jardim assim como na obra de arte. Jamais estão prontos. São atividades que exigem paciência, dedicação, persistência e talento. À medida que cultivamos a obra ou o jardim, na verdade cultivamos a nós mesmos.

No calor da crise, é o que tenta fazer Mariana: reconstruir-se em contato com a natureza, ao contrário de João, entregue a um desespero próximo da autodestruição. De certo modo, são pólos opostos. Ela, ligada às flores e ao estudo, a uma sensualidade que não nega o espiritual. Ele, preso ao dinheiro, à cobiça, ao sexo mecânico, ao jogo, ao materialismo sem sentido. O desafio, para ambos, é fundir opostos numa liga que lhes permita viver juntos.

O Jardim Secreto de Mariana não deixa de ser uma história de amor. História de amor difícil, em que tudo parece conspirar para separar pessoas que desejam estar juntas. Há um toque romanesco nisso tudo. Não apenas no enredo, mas na maneira como o filme é construído, seus diálogos, seus enquadramentos, a luz, a busca pela beleza formal mesmo quando os personagens parecem submersos em seus próprios conflitos.

É um jogo de contrastes. Como se estivéssemos no jardim de flores de Claude Monet em Giverny enquanto o mundo desaba em torno. No retrato de serenidade em torno do caos, O Jardim Secreto de Mariana se revela e, nessa contradição, acrescenta força à sua beleza.

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