Woody Allen, as grandes inquietações em regime de leveza


Não se iluda. O Festival do Amor, novo Woody Allen, é despretensioso apenas em aparência. Flui como divertida comédia romântica, ambientada numa cidade fantástica – San Sebastián, na Espanha. Mas, em torno das peripécias amorosas, reaparecem, na contraluz, alguns dos temas fundamentais da filmografia do diretor. Primeiro, seu apego à obra dos grandes mestres de sua arte – Orson Welles, Federico Fellini, Luis Buñuel, Jean-Luc Godard, François Truffaut e Ingmar Bergman. Segundo, sua visão de mundo desencantada. “Sossegue, sua vida não é vazia, apenas não tem sentido”, diz um dos personagens ao protagonista.

Não se trata de pessimismo. Pelo contrário. Se não existe sentido algum para a existência, somos livres para gozar com mais leveza a nossa (breve) passagem pela Terra. Com esse sabor agridoce na boca, saimos deste Festival do Amor, que estreia em janeiro nos cinemas. No fundo felizes, porque a inteligência e a lucidez são também formas da alegria nesta vida imperfeita.

Essa, digamos assim, filosofia artística, vem sendo esculpida por Woody Allen desde seus tempos na comédia stand up, passando pela angústia metafísica do jovem adulto em torno da pequenez humana diante do universo em contínua expansão. Ambas as vertentes se entrelaçam na maneira peculiar de Allen ao aproximar o imenso do insignificante, o longínquo do próximo, o fundamental do irrelevante. Diante da nossa finitude, tudo se equivale.

Há, enfim, esses eixos fundamentais. A inteligência, o riso culto, as referências canônicas – mas nada disso sendo levado excessivamente a sério. Tudo se relativiza e tudo pode ser divino ou pífio, dependendo do ponto de vista do observador. De modo que qualquer auto indulgência logo cede lugar à auto-depreciação, posição filosófica, mas também dogma ético da comédia stand up. Para rir dos outros, é preciso antes rir de si mesmo.

Sua trajetória se parece mesmo a uma construção de personagem. Dos primeiros filmes abertamente cômicos (O que há, Gatinha, Um Assaltante Bem Trapalhão, Bananas) chega ao ponto de virada – Annie Hall (1977) que, no Brasil, houveram por bem chamar de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Alvy Singer, interpretado pelo próprio Allen, é já essa figura pronta, o alter ego das fragilidades da sua persona artística, transformadas, por seu talento, em força autoral. Filme de sucesso e premiado (deu-lhe os Oscars de direção e roteiro), Annie Hall é cheio de criatividade, da fala do protagonista diretamente à câmera, à gag em que um chato de porta de cinema, ao citar indevidamente o guru das comunicações, é contestado Marshall McLuhan em pessoa, que estava na mesma fila. Tanta graça, mas, no fundo, o filme é a história de um fracasso amoroso.

Curioso, porque, uma vez estabelecido esse vínculo autoral associado à leveza de estilo, Allen parece se voltar mais para o seu lado cinéfilo. Interiores (1978), Manhattan (1979) e Stardust Memories (1980) são lindos, mas, para parte da crítica, engessados pelo excesso de referências.

Até que surge um opus fora de série, Zelig (1983), para muitos o melhor Allen entre todos. Afirmação discutível, porém, como não se deixar seduzir por este ser que tem a propriedade de estar em todos os lugares e de assemelhar aos outros, ao ponto de confundir-se com eles? Construído como falso documentário, Zelig prefigura, talvez, o ser humano contemporâneo, carente de personalidade própria, pronto para se adaptar à voz corrente, seguir com o rebanho, mimetizar-se pela semelhança ao outro. Um trabalho brilhante.

Mais um pulo do gato vem com Rosa Púrpura do Cairo, no qual a personagem frustrada (Mia Farrow) vai toda a noite ao cinema para rever o filme que a conforta da rudeza da vida real. Até que os personagens saiam da tela e a conduzam ao sonhado mundo de fantasia. O mundo real é tão hostil que, para não morrer, precisamos nos refugiar nesse maravilhoso dispositivo chamado cinema.

Mas o cinema não é apenas caminho de fuga ou alívio de tensões. Pode também ser ferramenta de investigação dos abismos da alma humana, a sondar o problemático senso moral da espécie. É do que trata esse trabalho magnífico chamado Crimes e Pecados (1989), banhado pelo espírito de Dostoiévski em torno dos dilemas da consciência. Quando Ivan Karamazov diz que “Se não existe Deus, tudo é permitido”, refere-se a uma situação parecida com a descrita no filme. Um homem manda matar a amante porque esta ameaça seu casamento. Quem pode puni-lo, se não for sua própria consciência? Problema recorrente para Allen, que volta ao tema anos depois em Match Point (2005).

A trajetória de Allen é a desse artista filosófico com ar de não se levar a sério. Um filósofo brincalhão e trágico. Culpa, crime e castigo juntam-se à consciência moral nessa interrogação sobre o problemático sentido para a existência. Por que estamos aqui, servimos a algum propósito? Sempre buscado, sempre negado, esse suposto sentido faz parte das interrogações sem resposta, porém inevitáveis para um ser humano inteligente.

Essa dúvida sistemática tem movido a obra de Allen, do mais ambicioso ao aparentemente mais modesto dos seus trabalhos. Mesmo quando ele não consegue mais filmar nos Estados Unidos e volta-se para a Europa, numa vilegiatura em aparência descompromissada pelas cidades do circuito turístico. Vicky Cristina Barcelona (2008), À Meia-Noite em Paris (2011), Para Roma, com Amor (2012) e agora este Festival do Amor, em San Sebastián partem da mesma matéria prima. Parecem divertimentos. E são. Mas, neste mundo de tantas (falsas) certezas, esses filmes não deixam de funcionar como questionamentos das contradições humanas e expressões de um grande artista, contraditório ele próprio.

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