‘Ataque dos Cães’, a desconstrução feminina do caubói machão


A silhueta de uma montanha, vista de certo ângulo, revela o perfil de um cachorro. É um dos sentidos do título de Ataque dos Cães, ou, no original, The Power of the Dog. Mas também um versículo da Bíblia. Esse é o título enigmático, e de dupla face, do novo filme de Jane Campion, tido como um dos melhores, senão o melhor deste ano próximo de terminar. Ataque dos Cães está disponível na Netflix.

A neozelandesa Jane Campion é bastante conhecida pelos cinéfilos. São dela o ótimo Um Anjo na Minha Mesa (1990) e o multipremiada O Piano (1993). Agora ela explora um território inesperado – o Velho Oeste, o western dos norte-americanos brancos, machos e aventureiros. A saga por excelência dos Estados Unidos, gênero fundador de uma mitologia do país, a ponto de ser considerado pelo grande crítico André Bazin como o “gênero americano por excelência”.

Depois de trabalhado, burilado e explorado por gênios como John Ford e Howard Hawks (entre tantos outros), o gênero caiu em desuso, até que seu crepúsculo fosse saudado pelo também extraordinário filme de Clint Eastwood Os Imperdoáveis (1992).

É curioso que, neste momento, sejam as mulheres a trazer de volta à vida este gênero tão “masculino”. Antes de Campion, outra diretora, Kelly Richardt, com A Primeira Vaca da América (First Cow), lançara um inusitado e inspirado olhar feminino ao Oeste, mescla de violência e delicadeza, aventura e culinária, uma receita certeira.

Agora Campion, com uma trama baseada em romance de 1967 de Thomas Savage, coloca o espectador no centro de um aparente embate civilizatório, como os clássicos do gênero, mas que logo tomará outro rumo. Dois irmãos de temperamentos opostos, George (Jesse Plemons) e Phil (Benedict Cumberbatch) administram sua fazenda em Montana. Phil é o protótipo do caubói brutal, agressivo e com testosterona à flor da pele. George é calmo, compreensivo e gentil.

Entre os dois, existe um equilíbrio instável, quebrado quando George se apaixona pela dona de um restaurante, Rose (Kirsten Dunst), viúva e com um filho adolescente, Peter (Kodi Smit-McPhee). Com o casamento, Rose, George e o enteado vão morar no rancho. Phil fará o possível para boicotar esse casamento e também para tornar impossível a vida do delicado Peter.

Essa sinopse nem de longe pretende dar conta da série de sutilezas empregadas por Campion para construir esse espaço cênico tenso, para expor e, em seguida, minar a série de polarizações envolvidas na trama. Esse processo de desconstrução é o cerne mesmo do filme. Uma infinidade de detalhes entra em jogo, pondo em movimento as subjetividades dos personagens, deslocando-as de suas posições originais.

O alvo maior, claro, será a masculinidade tóxica de Phil, revista, como num espelho, por seu inverso. Nesse caso, e talvez como resultado de leitura psicanalítica, a exibição de força é vista como fraqueza, e a tentativa de afirmação, apenas como disfarce para o que se tem dentro de si, reprimido e bem escondido dos outros.

O espectador lembrará do relativamente recente Brokeback Mountain (2005), em que o diretor Ang Lee “problematiza” (para usar esse verbo tão na moda) a masculinidade como valor simbólico absoluto no Oeste. Mas o filme de Lee é, digamos, mais afirmativo, por isso fez tanto sucesso numa época em que essas reivindicações afloravam no campo social.

Jane Campion vai adiante e é mais corrosiva. Mais incômoda. Subverte o clichê da masculinidade tóxica, mas o faz com tintas, digamos assim, góticas. Não propõe uma lição edificante, nem a obra se traduz como ode à tolerância. Tudo é ambíguo, tudo progride por fissuras.

Nessa narrativa, o suspense é contínuo e nunca sabemos direito para onde a história caminha. Mas sua parte final, além de surpreendente, tem esse matiz sinistro e uma pergunta embutida – o mal se combate com o mal? Desfecho em aberto, enigmático até certo ponto? Sim. Espectadores inteligentes sabem que uma obra se mede nem tanto pelas respostas que dá, mas pelas dúvidas que desperta.

Um comentário em “‘Ataque dos Cães’, a desconstrução feminina do caubói machão

  1. Que delícia de crítica, afiadissima! Só li agora porque quis ver o filme duas vezes antes de lê-la. Você faz ótima síntese de um filme, como você mesmo diz, repleto de detalhes.

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