Há uma diferença substancial entre as duas versões cinematográficas do romance de William Lindsay Gresham, Nightmare Alley, escrito em 1946. Dirigido por Edmund Gouldman, o filme de 1947 recebeu no Brasil o título de O Beco das Almas Perdidas. O atual, de Guillermo del Toro, recebe a tradução literal de Beco do Pesadelo. Se a primeira versão já era soturna, a contemporânea é muito, mas muito mais gótica, capaz de causar arrepios no mais frio dos espectadores.
Não que Del Toro apele para o sobrenatural ou para sustos fáceis. Nada disso. O que pode causar incômodo é a concepção noturna da natureza humana expressa na tela, em especial por seu protagonista. Esse ser sem remissão, ambicioso, mau e persistente é encarnado por Bradley Cooper, no papel que era de Tyrone Power no filme antigo.
Quem conhece as duas obras logo conseguirá notar a diferença entre elas. Primeiro, no desenho visual do filme de 2022, muito mais soturno, detalhista e angustiante em suas cores que na anterior versão em preto-e-branco. Segundo, a trama, embora semelhante, contém algumas diferenças fundamentais e sempre num viés mais pessimista na versão contemporânea. Por fim, no desfecho que, se no primeiro acenava com uma redenção possível, neste agora é de um desencanto sem fim. Deve-se dizer que o final está em consonância com o prólogo (também ausente no filme original), nada edificante, para dizer o mínimo.
Desse modo, não se deve estranhar que o novo filme tenha ido mal de bilheteria em sua carreira internacional. Talvez seja pessimista demais para o mundo de hoje. Como se sabe, em tempos difíceis o público pede escapismo, não necessariamente cor de rosa. Nesse nosso mundo, a cada dia mais parecido a um sonho mau, Beco do Pesadelo nos joga numa espiral sem fim de degradação e ausência de fé no mito da bondade inata da espécie humana. Rousseau, o filósofo do homem bom em sua essência, ficaria chocado.
Com tudo isso, por que então ver este Beco do Pesadelo? Por uma única e decisiva razão: o filme é muito bom. Dos melhores de Del Toro, cineasta mexicano radicado nos Estados Unidos, dotado de invejável imaginação visual e gosto requintado pelos seres monstruosos. Haja vista seus sucessos como O Labirinto do Fauno e A Forma da Água.
Na história, Stanton Carlisle (Bradley Cooper) é um andarilho em busca de trabalho. Emprega-se num circo, em troca de uns tostões. Lá o espera uma carreira rápida. Encanta-se com a moça que faz truques com eletricidade, Molly (Rooney Mara), e acredita-se correspondido. Torna-se amante da vidente, Zeena (Toni Colette). Ganha a confiança do marido da adivinha, o alcoólatra Pete (David Strathaim), cérebro por trás do número da esposa, um truque engenhoso para descobrir os pensamentos secretos das pessoas na plateia. Aproxima-se até do pouco sociável dono do circo, Clem (Willem Dafoe).
Estamos no final da década de 1930, com o país exausto pela longa depressão – e, nesse ponto, a cronologia dos dois filmes é a mesma. Nesses momentos de crise, o público pede emoções fortes. E o circo as oferece. Entre outros, destaca-se um número especial, feito clandestinamente por um homem bestializado chamado de “monstro”. Ele, de fato, tem toda a aparência de um ser saído das cavernas. No ápice do show (extra pelo qual as pessoas têm de pagar um valor adicional), esgana e devora uma galinha viva.
Há uma conversa central entre Clem e Stanton sobre como se “constroi” um “geek” (monstro) desses, naquele ambiente circense. Não adianto nada. Apenas ouça. E, para além do horror, comprove o grande ator que é Dafoe, mesmo ao interpretar um crápula como este Clem. Aliás, bons atores costumam render muito bem em papéis de vilões.
A sequência do enredo reserva uma mudança muito radical, quando Stanton, já fazendo sucesso como adivinho de salão, descobre possibilidades muito mais lucrativas para a arte herdada de Pete. Nessa segunda parte, entra em cena Cate Blanchett no papel da maquiavélica psicanalista Dra. Lilith Ritter. Muita gente acha que Blanchett parece forçada no papel. Prefiro pensar que é opção de Del Toro, um adepto do expressionismo. É um diretor que cava substância no real, mas a coloca na tela como através de uma lente de aumento e deformante. No contexto da trama, e em vista dessa preferência estética do cineasta, a personagem de Cate Blanchett faz todo sentido.
Entre Lilith e Stanton nasce um pacto sinistro, cimentado pela convicção mútua de que as pessoas não apenas são fáceis de enganar, como parecem gostar de fazer papel de otários. É meio simples de entender. De modo geral, as pessoas são frágeis, carregam culpas, inseguranças e ressentimentos dentro de si, e estão sempre à espera de algum gesto de afeto ou reconhecimento. Enganam-se a si mesmas – com a generosa ajuda dos espertalhões.
Essa descida aos desvãos menos encantadores da natureza humana é um dos trunfos do filme. Mas também é o que pode afastá-lo de plateias que desejam algo mais digestivo que uma imagem tão nítida e deformada de si mesmas.
Não por acaso, o palco dessa fábula soturna é, na verdade, um picadeiro. Para Fellini, o circo era o espaço do sonho; para Del Toro, é a melhor imagem do pesadelo.
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