O sonho de Tomaso Buscetta era morrer na cama, como um pacato cidadão. Mas era um sonho difícil de realizar. Buscetta era um capo mafioso que, a certa altura, refugiou-se no Rio de Janeiro e casou-se com uma brasileira. Preso, foi extraditado, respondeu a processo e decidiu tornar-se um “pentito”. Um arrependido que, em troca de vantagens, denuncia seus antigos aliados. Um delator. Traidor, como diz o título do filme de Marco Bellocchio a ele dedicado.
Quem conhece a formidável filmografia de Bellocchio sabe que dificilmente ele faria um filme banal sobre o crime organizado na Itália. E, de fato, O Traidor não se parece com nada já feito sobre o assunto – aliás, uma filmografia bastante vasta, e que vai além das fronteiras geográficas da península. Basta pensar em títulos como O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros, voltados para a máfia em Nova York e dirigidos por ítalo-americanos, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese.
No contexto de O Traidor, há uma rivalidade entre os grupos de Palermo e Corleone, na Sicília. Durante a guerra de gangues, Bellocchio se limita a colocar na tela a contagem do número de mortos. Procedimento “distanciado” (à maneira de Brecht), que já revela a sua disposição de não romancear o assunto, e, sem ignorar a violência, não transformar o filme num oceano de sangue.
Na primeira parte, as cenas se alternam entre Palermo e o Rio de Janeiro. O Buscetta “brasileiro” está casado com a socialite Maria Cristina (Maria Fernanda Cândido). Mas é preso pela polícia brasileira e deportado. Para proteger a família (e a si mesmo) decide colaborar com a Justiça. Quem o interroga é o juiz Giovanni Falcone. As conversas entre os dois são de antologia. Contêm aquele elemento de estranheza que o psicanalisado Bellocchio introduz, com frequência, em suas tramas realistas. Sabe que a realidade, bem vista, é sempre acompanhada de algo que vai além dela e desafia a razão. Existiria amizade entre os dois homens? Sem dúvida. Mas também respeito mútuo e, com certeza, um aprende com o outro. Tudo isso feito sem um pingo de pieguice, como se verá.
A segunda metade é consagrada aos tribunais italianos, nos quais Buscetta deve enfrentar, cara a cara, os homens que denunciou. Não são pessoas comuns. São homens de poder, criminosos impiedosos e, para os quais, a lei do silêncio, a “omertà”, é sagrada. Metidos em jaulas, os membros da Cosa Nostra, mantêm postura de desafio. Fumam charutos, gracejam com o juiz, hostilizam e ameaçam testemunhas. Uma anarquia.
Bellocchio já havia filmado essa ópera bufa dos tribunais italianos em outro de seus filmes, O Diabo no Corpo, em que transpõe o romance de Raymond Radiguet (Le Diable au Corps) para a época da luta armada na Itália. Ficou famosa a cena em que um casal de acusados faz sexo durante o julgamento.
Outra cena a reter em O Traidor – quando Buscetta (extraordinário Pierfrancesco Favino) vai tomar as medidas para um terno e cruza, na alfaiataria, com um personagem conhecido – o controverso político Giulio Andreotti (retratado num filme notável de Paolo Sorrentino, O Divo). Buscetta e Andreotti se encontrarão também no tribunal, para a acareação de uma denúncia. Buscetta sai-se mal deste encontro. Não consegue sustentar as arguições da defesa de Andreotti e demonstra toda a sua fragilidade. Faz também parte da estratégia de Bellocchio – retratá-lo como ser humano, nem herói e nem vilão; nem fraco e nem inteiramente forte. Apenas isso, um homem do crime, um pai de família, um ser contraditório, porém.
Daí que, em sua trajetória, de “chefão dos dois continentes”, como era conhecido, a refugiado nos Estados Unidos, Buscetta se vê privado de quase tudo. Leva seu cotidiano no exílio, protegido pela polícia e, segundo ele mesmo, vivendo às custas da mulher.
Há muita melancolia neste filme de Marco Bellocchio, traço frequente em sua filmografia. Uma compreensão profunda da vida e suas contradições, possível a um artista que chega aos 83 anos com seu potencial criador intacto. Aborda a política por seu lado sombrio e, ao tratar do crime organizado, não deixa de notar suas relações perigosas com a política “oficial”. É um traço histórico italiano, e brasileiro também, o que nos aproxima dessa história criminosa, em parte vivida no Rio de Janeiro.
Bellocchio faz um cinema para adultos, para gente capaz de suportar as realidades da vida e se recusa o consolo fácil do escapismo.