Morreu hoje o crítico e cineasta Jean-Louis Comolli, aos 81, “d’une longue maladie”, informa o site do Les Inrocks. Comolli foi diretor dos Cahiers du Cinéma na fase mais politizada da revista. Cineasta, filmou La Cécile, sobre a Colônia Cecília, comunidade anarquista no Brasil. É autor de inúmeros ensaios incontornáveis, entre eles sobre o Daesh (Estado Islâmico) e a maneira como seus integrantes se valem dos meios audiovisuais para atingir seus fins. Autor, também, de um ensaio fundamental, que leva o título provocativo de Como Filmar o Inimigo. Está presente na coletânea Voir et Pouvoir (Ed. Verdier), com versão brasileira (reduzida) Ver e Poder. O texto refere-se ao desafio de filmar o então fascista francês em ascensão Jean-Marie Le Pen. Reveste-se de interesse para nós, que vivemos nos debatendo com o dilema entre registrar ou ignorar os disparates diários do nosso fascista de plantão.
Comolli esteve aqui em 2016 e deu um curso condensado, de um dia, no Unibes Cultural. Foi um belo aprendizado e uma convivência melhor ainda. Almoçamos juntos e conversamos muito sobre cinema. E política, claro. Falei com ele sobre Eduardo Coutinho e do magnífico Jogo de Cena e como os próprios limites entre documentário e ficção eram colocados em questão nessa obra-prima. Comolli nunca tinha ouvido falar desse filme e ficou muito interessado em vê-lo. Dias depois, Rô e eu compramos uma cópia em DVD e mandamos de presente para seu endereço em Paris.
Abaixo, a matéria que fiz para o Estadão, na época.

“Mas, afinal, você é comunista, socialista ou anarquista?” A pergunta poderia gerar uma resposta ríspida. Mas não. De ótimo humor, sempre, o crítico, escritor e cineasta francês Jean-Louis Comolli, respondeu que, na verdade, sentia-se um pouco dos três lados. Comunista, questiona o capital; Socialista, preza a liberdade individual, mas também a justiça social; anarquista, lhe é simpática a utopia da abolição do Estado.
A pergunta, a resposta, e o debate se deram no quadro do festival DocSP, no Unibes Cultural, para o qual Comolli foi o convidado de honra. Cabe esclarecer que ele é uma verdadeira instituição do pensamento cinematográfico francês. Autor de vários livros, entre os quais o clássico Voir e Pouvoir (traduzido no Brasil como Ver e Poder em versão reduzida), um catatau de quase 800 páginas no original, dirigiu a revista Cahiers du Cinéma de 1966 a 1971 e é autor de vários filmes. “50 para ser exato, dos quais quatro ficções”.
Uma delas tem diretamente a ver com o Brasil – La Cecília (1976), que tem como tema a famosa Colônia Cecília, comunidade anarquista plantada no Paraná, no século 19, sob os auspícios de ninguém menos que o imperador Pedro II.
Em São Paulo, Comolli deu uma Masterclass que se poderia ser descrita de forma modesta como intensiva. Deu-se em dois períodos e mais uma extensão noturna. Começou na parte da manhã, com pausa para almoço, foi retomada à tarde e, à noite, houve a exibição do seu filme mais recente Cinema Documentário – Fragmentos de uma História, com discussão após. No intervalo para refeição, ele almoçou em companhia da reportagem do Estado, à qual concedeu entrevista exclusiva. Ou seja, foi um dia inteiro dedicado à imersão no pensamento cinematográfico e político desse que é um dos mais importantes pensadores de cinema da atualidade.
Para ele, as duas dimensões, política e cinematográfica, não se separaram. Cinema, política, História, estratégias de dominação, sociedade do espetáculo – tudo isso corre junto e se relaciona em sua grade analítica de grande perspicácia teórica. Mas nada é dogmático e nem separado da esfera propriamente cinematográfica. E, novidade entre críticos, para ele o espectador tem um lugar central em suas análises.
Por isso, toda a parte da manhã da Masterclass foi dedicada a alguns pressupostos teóricos que ele queria deixar como bases, pilares para uma discussão cinematográfica sólida.
Por exemplo, tentou desativar de entrada uma antiga certeza, a de que documentários, ao contrário das ficções, nunca são encenados. “São encenados desde o primeiro documentário conhecido, o dos Lumière filmando a saída das operárias de sua fábrica”, disse. “Como a luz não ficou boa, eles tiveram de pedir que elas voltassem a sair sob condições de iluminação mais favoráveis. Nessa segunda tomada, as operárias eram já intérpretes de si mesmas”. O mesmo se passa com o clássico Nanouk, um Esquimó, de Flaherty, em que o personagem representa a si mesmo. Isso não quer dizer que ficção e documentário se confundam. No primeiro, os intérpretes são mantidos sob contrato; no segundo, os personagens podem interromper o filme a hora que quiserem e, portanto, é preciso estabelecer com eles algum tipo de relação de cumplicidade ou contrato simbólico.
O problema é quando o personagem não é exatamente simpático aos olhos do realizador. Mas, no caso, nem se trata de “simpatia” e sim de posição política. No episódio mais marcante, Comolli, um homem de esquerda, decidiu filmar o então maior representante da extrema-direita francesa, o líder da Frente Nacional Jean-Marie Le Pen (hoje substituído no comando pela filha, Marine). No início dos anos 1990, preocupado com o crescimento da direita, Comolli se colocava perguntas: “É preciso, para combatê-la, filmar a FN? Como? A que preço, sob que riscos?” As perguntas estão contidas num artigo já hoje clássico, Como Filmar o Inimigo? Exemplo: Em “La Campagne de Provence e Marseille em Mars” um grupo feminino de militantes da FN insulta uma mulher que nunca é vista. A câmera coloca-se do ponto de vista da vítima, enquanto as mulheres de direita ameaçam e gritam “Volte para o seu país!” para a argelina que jamais é mostrada. O ódio das mulheres se volta tanto contra a “estrangeira” como contra a câmera que desvela essa raiva e a revela ao espectador.
Outra cena. Le Pen percorre um mercado e sorri para seus eleitores. É todo simpatia. Mas um segurança, que o segue de perto, de repente esbarra no político e este reage com raiva: “Eu disse a você para não encostar em mim. Não gosto que encostem em mim!”, grita, fora de si. “Filmados, esse gesto e esssas palavras fóbicos abrem-se subitamente para a outra cena que ameaça, atrás dos sorrisos e da bondade”, comenta Comolli. “A partir do momento em que se representa, um poder se torna sua própria caricatura”.
São filmes militantes, que escolhem posição e lado. E trabalham ao desvelar as intenções ocultas dos políticos, a “outra cena”, como a define Comolli, tomando a expressão emprestada de Freud. Isso porque “há uma sutileza perversa do fascismo à francesa, ele constamente nega a si mesmo”, escreve em Como Filmar o Inimigo.
Na Masterclass acrescenta um conselho: “Jamais ridicularizar o inimigo, pois isto o humaniza e coloca o espectador a seu favor”.
Comolli comenta que outro dos traços preocupantes da extrema-direita francesa é que ela se apresenta como “não-política”, em oposição aos políticos tradicionais, desgastados aos olhos da opinião pública. Por isso, os filmes se preocupam em flagrá-los não apenas no que têm de autoritário, mas revelando que sua atitude é puramente política, embora se empenhe em negá-lo. “O FN, mascarado sob uma retórica antipartido nada é além de um partido, que é preciso desmascarar como tal para combatê-lo politicamente.” Notou alguma semelhança entre a realidade francesa e a brasileira?
Essa retórica “antipartido e antipolítica” não é gratuita. Na conversa com o Estado, ao comentar a atual situação brasileira, Comolli nota que a democracia está sendo trocada com facilidade por uma “governança da elite”, como define. Prevenindo-se contra as imprevisibilidades da democracia, as elites econômicas governam de fato, estreitando a margem de manobra dos eleitos pelo voto popular. “É o que está acontecendo não apenas aqui na América do Sul, mas na Europa também”.
Box
Jean-Louis Comolli
Nascido em 1941. Entre 1962 e 1968, foi crítico dos Cahiers du Cinéma. Dirigiu a publicação entre 1966 e 1971, período caracterizado por uma abordagem marxista-estruturalista. Atualmente escreve nas revistas Trafic e Images Documentaires.
Além de se dedicar ao cinema, foi crítico de jazz e escrevia na revista Jazz Magazine. Até hoje é fã da música americana, em especial do Free Jazz.
Seu trabalho referencial é Voir e Pouvoir (Verdier, 2004), escrito ao longo de dez anos. Uma edição brasileira, bem traduzida e comentada, foi publicada pela Universidade Federal de Minas Gerais em 2088.
Entre seus filmes mais importantes, destacam-se Les Deux Marseillaises (1968), La Cecília (1976), L’Ombre Rouge (1981) e Le Concerto de Mozart (1996).