O que esperar de um filme de quase duas horas contando a história de uma geógrafa francesa? Tudo, se o filme for Suzanne Daveau, dirigido pela portuguesa Luíza Homem.
Vamos logo dizer: não se trata de um filme comum. Basicamente, compõe-se de um longo depoimento de Susanne, nascida em Paris em 1925. Sua fala – firme, segura, invejável – acompanha uma sequência nada usual de imagens. Fotografias que ela tirou ao longo dos seus muitos anos de vida e inúmeras viagens; filmes em textura super-8; material de arquivo e outros filmes.
Que vida! Nascida no entre-guerras, conta como a família abandonou Paris na iminência da chegada do exército alemão. Consumada a invasão, a família regressou e ela viveu sua adolescência sob a Ocupação. É uma testemunha do século.
Susanne fala também do seu encontro com o geógrafo português Orlando Ribeiro. Os dois se conheceram num congresso científico, mas Orlando era casado, ainda que em via de separação. Divorciado, casou-se com Suzanne, e passaram a morar em Portugal. Aprendeu a língua e tornou-se uma reconhecida geógrafa do país.
Há essas recordações sentimentais, mas o grosso do depoimento concentra-se sobre a atividade profissional de Susanne. Métier que ela abraçou com paixão e desvelo. Sua razão de viver. Professora rigorosa, acha que às vezes pegava pesado demais com os alunos. Deve ter sido uma mestra excepcional, tendo em vista a desenvoltura que, com idade avançada, fala da sua área de conhecimento.
Discorre sobre geografia física, embora diga que seu cup of tea é a geografia humana. Fala de fósseis, vulcões, mapas. Transmite essa característica sempre presente nas pessoas que se dedicam ao conhecimento – curiosidade inesgotável, o espanto sempre renovado diante do mundo, a consciência de que toda sabedoria, por maior que seja, é sempre parcial, provisória, sempre pronta a ser corrigida e ampliada por algo ou alguém que virá depois. Os parvos ignoram também isto, a beleza do que é provisório porque está em constante movimento. Pesquisadora rigorosa, Susanne coloca um toque de poesia e humanismo em tudo o que diz.
Com esse material, Luíza Homem faz um filme simples e meditativo. De tempos em tempos, reserva ao espectador espaços de descanso e reflexão, com música e sequência de fotos em que nada é explicado ou dito, apenas mostrado. Um desfile da beleza e da variedade do mundo, dos desertos africanos às metrópoles ocidentais. O mistério do mundo.
Há algo de também misterioso (ao menos para mim) no cinema português, e que me encanta. Essa lentidão tranquila. Esse desenvolvimento sem pressa. Seguro, como que ancorado numa cultura antiga e serena. Um espaço de pensamento em meio à cacofonia atual. Muito bonito, muito relaxante.
Suzanne Daveau. Portugal. Direção de Luíza Homem.
Em cartaz no Arteplex Frei Caneca, e também no Rio e em Manaus.