BRASÍLIA – Em sessão dedicada ao cinema negro (que aliás tem protagonismo no festival em seu todo), a terceira noite de competição terminou de forma apoteótica, com a exibição do longa Rumo (DF).
Até certo ponto, a catarse do final pode ser atribuída ao fato de Rumo, dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo, ser uma produção local, assim como Mato Seco em Chamas. Aliás, esta é a primeira edição do Festival de Brasília em que duas produções do DF fazem parte da mostra principal.
Mas o clima eufórico se deve apenas em parte ao fato de o filme estar jogando em casa, o que é sempre favorável, claro. A meu ver, a emoção maior vem da própria obra, um histórico da luta pela implantação de cotas raciais nas universidades brasileiras. Em particular, na UnB, a primeira universidade do país a adotar a prática, 23 anos atrás.
Até hoje o tema é “polêmico”, mesmo com os excelentes resultados obtidos.
Como se sabe, as cotas foram alvo de ataques por vários motivos, tais como infringir a regra de ouro da meritocracia, essa fabula liberal que supõe que todo mundo tem o mesmo ponto de partida para concorrer com os outros. Depois, a de introduzir o racialismo numa sociedade que, supostamente, pela benigna miscigenação (leia-se Gilberto Freyre), viveria uma utópica democracia racial. Tudo isso hoje parece fantasia, mas existe ainda quem se aferre a suas convicções e pratique um racismo mal disfarçado. Há disso no filme, na transcrição de uma famosa mesa-redonda em que senhores brancos e bem pensantes pontificam sobre a questão racial até serem interrompidos por militantes do movimento negro que, por isso, foram tachados de “fascistas”.
Há disso, mas o foco principal recai sobre os protagonistas de fato, os heróis dessa história, personagens como alunos e alunas que falam de suas experiências e dificuldades ao ingressar por meio de cotas na universidade. Há também professores e outras pessoas que dão depoimentos consistentes.
Tudo é costurado por outra trama – esta ficcional – com uma família negra periférica, cujo filho se prepara para o vestibular. Acontece que a mãe, Leni Babi, depois de terminadas as primeiras gravações, presta, ela própria, vestibular para a UnB, é aprovada e passa a cursar Artes Cênicas na universidade idealizada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. A ficção vira fato e vice-versa. Essa articulação serve bem ao filme e não o distorce.
Nesse caráter híbrido, Rumo emociona e não apenas aos diretamente envolvidos pela política de cotas, pois a luta antirracista pertence a todos. Ao registrar a luta por esse passo importante que é a democratização do acesso às redes públicas do ensino superior, lembra que democracia, como ensinam os filósofos, não é apenas um conjunto de instituições em funcionamento, separação dos poderes, escolha dos representantes pelo voto e garantias individuais. É também, e sobretudo, expansão de direitos das pessoas. Por essa democracia lutamos todos – e por isso nos vemos na tela.
Curtas
Os curtas-metragens da noite também foram dedicados ao protagonismo negro, com a exibição de Sethico (PE), de Wagner Montenegro, e Calunga Maior (PB), de Thiago Costa.
Dois curtas pouco narrativos e que apostam no universo mítico e nas tradições, valorizando o impacto das imagens e dos sons.
Em Sethico, evoca-se o apagamento da memória de pessoas traficadas da África, uma tragédia originária do período colonial e com marcas até hoje na sociedade brasileira.
Em Calunga Maior, a personagem Ana, escritora órfã, decide explorar os becos da memória e do seu relacionamento com a mãe e a avó.
Dois bonitos trabalhos.