Bardo, Falsa Crônica de umas Quantas Verdades


Bardo, Falsa Crônica de umas Quantas Verdades estreia hoje nos cinemas. Dia 16 de dezembro entra na Netflix. Vi o filme durante a Mostra. Eis o texto:

Em entrevista, Alejandro González Iñárritu disse que mudar de país era sempre algum tipo de exílio. Sabe do que fala. Depois do sucesso do seu Amores Perros (2000), foi para os Estados Unidos e transformou-se em autor de sucesso, vencedor de dois Oscars de melhor diretor com Birdman (2014) e O Regresso (2015). Bardo, Falsa Crônica de Umas Quantas Verdades, produção da Netflix, assinala seu retorno ao México, depois de mais de 20 anos ausente.

Retorno, mas não em chave realista. Para desenhar seu panorama mental e existencial do exilado que volta à pátria, Iñárritu toma como modelo Oito e Meio, de Federico Fellini. Quer dizer, joga com os diversos personagens de sua vida, em chave ora realista ora onírica, e em diversas etapas: pai, mãe, esposa, filhos, inclusive um filho que não nasceu, amigos, amigas, colegas de profissão, etc. Mas também entram figuras da história mexicana, como os indígenas e o conquistador espanhol Hernán Cortez. Passado e presente mesclam-se, assim como realidade e fantasia, as duas faces da experiência humana separadas por uma linha cada vez mais tênue.

No clássico de Fellini o protagonista era um diretor de cinema em crise, Guido (Marcello Mastroianni), que em pleno bloqueio criativo não consegue dar seguimento a um filme. Em Bardo, Daniel Giménez Cacho faz Silvério, jornalista e documentarista mexicano, radicado nos Estados Unidos, escolhido para ganhar um prêmio badalado em Los Angeles. Com a distinção, ele volta a chamar a atenção no México, para onde vai para participar de programas de TV, ser entrevistado e homenageado por seus conterrâneos, que acham uma grande honra um mexicano vencer um prêmio nos Estados Unidos.

Há um traço ficcional na história: a Amazon acaba de fechar um contrato para comprar a Baja Califórnia ao México. Reproduz-se algo que aconteceu na guerra entre México e Estados Unidos no século 19, quando o país latino perdeu boa parte do seu território para o “grande irmão do Norte”. Nota pessoal: os mexicanos não se esquecem desse fato histórico terrível. Tempos atrás, estive no museu do castelo de Chapultepec, na Cidade do México, e um funcionário nos explicava esses fatos com tanta indignação que pareciam ter sucedido na semana anterior. Fechar parêntese.

De qualquer forma, Chapultepec, encravado num bosque em plena Cidade do México, é cenário de uma das batalhas imaginárias de Silvério, referenciadas à história real do país, quando os chamados “niños heroicos” enfrentaram os adultos do exército adversário na defesa do castelo.

Isso para dizer que no Oito e Meio de Iñárritu eventos históricos mesclam-se a acontecimentos individuais, tanto reais como imaginários. Mesmo eventos pessoais transfiguram-se. O filho que vive muito pouco toma a forma de um bebê que se recusa a enfrentar o hostil mundo externo e é reconduzido ao útero materno. O balanço do genocídio espanhol na colonização é figurado no diálogo entre Silvério e Cortez, ambos no alto de uma montanha de cadáveres indígenas. Tudo isso no centro histórico da cidade, o Zócalo, com sua catedral, seus palácios e ruínas do passado que afloram por toda parte como restos testemunhais de civilizações antigas.

Esse projeto de balanço de vida e introspecção imaginária não deixa de ser bem-sucedido. Iñárritu recorre à sua conhecida imaginação visual e, também sua característica, a certos exageros, retóricos como imagéticos. Mas, francamente, achei que não comprometem em nada esse filme feito evidentemente com o coração mas também com a inteligência. Ao contrário do modelo felliniano, que não tinha de lidar com o tema do exílio (a não ser o exílio interno), Bardo, Falsa Crônica de umas Quantas Verdades deve tratar dessa situação ambígua de quem sai e é cobrado por seus contemporâneos que ficaram, como se fosse um traidor. Por outro lado, não é reconhecido como cidadão de pleno direito em seu país de adoção. Fica com um pé em cada canoa, boiando sobre o vazio. A vida é complicada – e diga-se, em favor de Iñárritu, que ele não foge dessa dificuldade. Quem quiser que o siga.

Visto num cinema de projeção e som impecáveis (como no Cinesesc), o filme se engrandece, tão rico é seu material audiovisual. É mais uma produção da Netflix destinada à tela pequena e que só funciona por completo na tela grande, como O Irlandês, de Martin Scorsese, e Roma, de Alfonso Cuarón. Paradoxos da era do streaming.

No fundo, Bardo é a história de um homem, de um ser humano, que, na meia idade, busca sentido em uma trajetória errática e sem grande significado, como já havia descrita, para sempre, por Shakespeare: “A vida é uma história, contada por um idiota, cheia de som e fúria e significando nada” (Macbeth).

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Um comentário em “Bardo, Falsa Crônica de umas Quantas Verdades

  1. Olá Zanin, assisti ontem ao Bardo e estou impactado até agora, Achei uma obra prima. Interessantíssimo. No futuro será revisto e devidamente valorizado. Uma curiosidade: o discurso do prisioneiro falando sobre o poder do crime organizado e do tráfico, atualmente está tendo uma versão difundida pelas redes de fake news no zap como sendo do Marcola falando do PCC, e também atribuída a um texto escrito há 17 anos pelo Arnaldo Jabor. Parece o mesmo texto. Abs

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