Brasília 2022: Mandado, justiça brasileira, modo de usar


BRASÍLIA – Mandado, de João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes, lembra um fato ocorrido alguns meses antes da Copa do Mundo de 2014. Um juiz expede um mandado de busca coletivo, que, na prática, autoriza a polícia a entrar em qualquer residência de duas favelas cariocas.

A inconstitucionalidade desse tipo de instrumento é denunciada por vários juristas e especialistas em leis. Ele abre caminho para qualquer tipo de arbitrariedade contra as populações dessas comunidades. Por trás, o desejo inconfessado do governo de “higienizar” a cidade para receber dois grandes eventos esportivos mundiais – a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.

De feitio convencional, mas bastante multifacetado, o doc reconstrói o caminho de geração das favelas cariocas, destinadas a abrigar os excluídos e mantê-los fora da cidade, porém suficientemente próximos para que possam servi-la com sua mão de obra barata.

Usa farto material de arquivo, discute a questão com especialistas e também com moradores. É bastante convincente. E nos revela algo que sabemos mas de que muitas vezes ignoramos os detalhes – o desenho perverso da estrutura autoritária da sociedade brasileira, que se mantém em pé mesmo quando um partido progressista ocupa o poder central.

A estrutura é mais forte que um governo contingente – e essa é uma das nossas tragédias. Um único governo, ou dois, não conseguem afrontar séculos de opressão num período de poucos anos. E a população tem pressa, pois fome e exposição à violência não esperam. Mandado é uma lição de Brasil, país que, como dizia Tom Jobim, não é para amadores.

Curtas – Até agora achei Escasso (RJ) o mais original dos curtas apresentados. Dirigido por Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meireles, mostra uma pessoa (Anastácia) que entra em uma casa deserta e dela se apossa, enquanto grava um depoimento para uma equipe de filmagem. Ao discutir o direito à moradia, mostra humor e verve corrosiva. Na sinopse se apresenta como um“…mockydocumentary político que nunca fala de política. Um filme excessivo, verborrágico, faminto e cômico”. É representante de uma nova esquerda que chega ao audiovisual faz algum tempo e mantém distância com a esquerda tradicional, tida talvez como careta, economicista ou insensível a questões identitárias. Com jargão próprio – corpos não-hegemônicos, filme decolonial, corpos, corpos, corpos – esse pessoal compõe a nova cena dos festivais de cinema no Brasil. Estabelece uma pedagogia do olhar e uma reforma gramatical, com ênfase em linguagem neutra. Em geral é normativa e austera. No caso de Escasso, o humor salva. A alegria é a prova dos noves, dizia um antigo.

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