JOÃO PESSOA – Depois de uma viagem caótica de 12 horas até a Paraíba, já estamos em pleno Festival Aruanda em sua 17ª edição. Um festival que a gente já frequenta há vários anos, mas ao qual não vínhamos desde 2019 por causa da pandemia. Em 2020, o Aruanda fez uma edição online, como tantos outros eventos do gênero. Já no ano passado voltou ao presencial, mas não pudemos vir por outros compromissos assumidos. Este ano voltamos. E para ficar, espero, porque este festival é dos mais interessantes do país.
Começou ontem com uma vasta sessão de homenagens. A principal delas para a atriz e cantora Zezé Motta. Uma simpatia de pessoa, Zezé é a protagonista de Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, um grande sucesso do cinema brasileiro dos anos 1970. Zezé recebeu seu troféu Aruanda, agradeceu ao público que a aplaudiu de pé. Em seguida, (re) vimos o filme, talvez pela décima vez, um dos mais polêmicos dos anos 1970.
Xica foi personagem real do Brasil Colônia, uma ex-escrava que se tornou rica e poderosa na Diamantina do século 18. Em seu relacionamento com o contratador João Fernandes (Walmor Chagas), Xica foi alforriada e se tornou uma espécie de rainha da localidade mineira, que, como o topônimo indica, era rica em diamantes.
A estética é deliberadamente over e Cacá, na época, justificou-se ao dizer que mimetizava uma das manifestações mais tipicamente brasileiras, as escolas de samba. De qualquer forma, a atuação cool de Walmor Chagas introduz uma nota de sobriedade ao filme, ao passo que o resto do elenco entra alegremente na proposta mais espessamento colorida do diretor. Dá prazer ver em cena uma Elke Maravilha e um Stepan Nercessian ainda muito jovens.
Mas quem brilha mesmo na tela é Zezé Motta, em seu maior papel no cinema e que a tornou figura nacional. Xica da Silva levou nada menos que 3,1 milhões de pessoas. Com a dispersão cultural dos dias de hoje, é difícil imaginar que um filme pudesse quase monopolizar as conversas durante um certo período, como aconteceu com Xica da Silva nos anos 1970.
As polêmicas se davam no interior de um país ainda submetido a uma feroz ditadura militar. O cinema fazia sua parte na batalha das ideias, mas já não de maneira direta, como no Cinema Novo. Cacá, um dos expoentes desse movimento, tomava uma direção mais popular (nacional-popular, se dizia então), mas foi atacado por parte da esquerda ao abordar essa figura de sexualidade exuberante tida como libertária no contexto do Brasil-Colônia. Reagiu aos ataques com a fórmula das “patrulhas ideológicas”, expressão que fez correr muita tinta naqueles meados dos anos 1970. Já estávamos um pouco afastados do horror da era Médici mas ainda longínquos do retorno à democracia, que ficaria apenas para dez anos depois.
É preciso paciência para entender e viver no Brasil. No entanto, seria interessante ver o efeito que Xica da Silva faria hoje sobre um imaginário já muito colonizado pelo politicamente correto e pela fiscalização intensiva dos modos de dizer e de interpretar a história. Imagino que muita gente ficaria incomodada com partes do filme e algumas expressões nele usadas.
Seria interessante ouvir o que o diretor teria a dizer sobre esse filme de 46 anos atrás. Mas Cacá, embora convidado pelo festival, não pôde vir pois está filmando seu Deus é Brasileiro 2.
Depois dessa abertura, começa hoje a mostra competitiva.
Mostra Competitiva de Longas NACIONAL”
Andança – Os Encontros e As Memórias de Beth Carvalho, de Pedro Bronz – Brasil/RJ – Documentário – 115 min – 2022
Sinopse: Beth Carvalho, a “Madrinha do Samba”, foi uma das maiores sambistas do Brasil, ajudou a revelar grandes nomes e a revitalizar o gênero musical. Seus outros talentos e sua sensível capacidade de percepção da realidade que a cercava fez com que ela própria documentasse os ilustres encontros ao longo dos 53 anos de palcos e pagode. As imagens do documentário são parte desse vasto acervo nas mais diferentes mídias: super-8, vh-s, mini-dv, k7 e fotos. O filme se debruça sobre esse material de Beth Carvalho para traçar um recorte único, íntimo da carreira e da vida dessa singular figura da cultura nacional.
Bia, de Taciano Valério – Brasil/PE – Ficção – 71 min
Sinopse: Bia é uma mulher não alheia aos ditames de uma sociedade patriarcal e sexista, e que enfrenta, como tantas outras mulheres, as dificuldades em dar um “não” às práticas heteronormativas, misóginas e sexistas da sociedade em que vive. Doutoranda, investiga o lugar da mulher no espaço da luta da camponesa, traduzida nas mulheres sem-terra, que são personagens reais no filme, através delas Bia busca forças para romper de vez com as estruturas fundacionais do patriarcado, como casamento, família, valorizando o seu trabalho e a sua liberdade.
Um filme de ficção que dialoga de forma concreta com a realidade e temas pertinentes em nossa sociedade, é ambientado em vários momentos em situações reais, gravadas no acampamento Normandia do MST em Caruaru, num misto de ficção e documentário.
Fausto Fawcett na Cabeça, de Victor Lopes – Brasil/RJ – Documentário – 103 min – 2022
Sinopse: Cantor, poeta e compositor de músicas ícones como “Kátia Flávia” e “Rio 40 Graus”, Fausto Fawcett é também autor de cinco romances e diversas performances que desvendam um vasto e singular universo. Partindo de signos reais e cotidianos com raízes em Copacabana, sua obra cruza fronteiras narrativas, filosóficas e temporais para instaurar visões futuristas e experiências sensoriais que chacoalham a aventura humana nos carregando para outros mundos. O destino deste filme-transe é entrar nestes mundos que habitam a mente criativa, inquieta e desafiadora de um artista único.
Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor, de Alfredo Manevy – Brasil/SC- Documentário – 96 min – 2022
Sinopse: O documentário “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor” celebra o legado poético de Lupicínio Rodrigues, investigando a contribuição musical e o contexto histórico desse compositor nascido no Rio Grande do Sul e autor de sucessos que ultrapassam gerações.
Pérola, de Murilo Benício – Brasil/RJ – Ficção – 92 min – 2022
Sinopse: Um dia depois do enterro de sua mãe, Mauro, interpretado por Leonardo Fernandes, engata a escrever suas lembranças com ela em uma espécie de ritual de despedida. Enquanto viaja para rever a família em Bauru – ele fora o único filho que saiu dos limites da cidade para viver o sonho de escritor no Rio de Janeiro –, mergulha nas histórias dessa típica mãe do interior, superprotetora e exigente. Com Drica Moraes no papel de Pérola, a comédia dramática é um retrato de uma família comum, que briga, faz as pazes, comemora, chora e segue cheia de vida.
Propriedade, de Daniel Bandeira – Brasil/PE – Ficção – 100 min – 2022
Sinopse: Para proteger-se de uma revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família, uma mulher se tranca em seu carro blindado. Separados por uma camada impenetrável de vidro, dois universos estão prestes a colidir.
Além dos longas da mostra competitiva nacional, haverá os curtas e a seção Sob o Céu Nordestino, que abriga produções da região Nordeste e que, por vez, reserva surpresas muito agradáveis, mostrando a vitalidade criativa da região. Há também as competições de curtas e inúmeros debates e mesas-redondas com reflexão sobre o cinema e que tornam João Pessoa a capital simbólica do cinema nacional durante a semana.
Que maravilha acompanhar este importante festival através das suas análises e comentários Zanin, brigadão…
CurtirCurtir