O mexicano Guillermo del Toro encontra na fábula de Pinóquio um veículo ideal para o seu gosto gótico. De fato, a história de Collodi (veja texto abaixo) é ideal para provocar calafrios. Em especial no público infantil. Mas continua incômodo vida afora, falando algo em surdina para a criança que subsiste em nós.
Del Toro faz seu filme usando a técnica de stop motion. Os bonecos são muito bonitos. E, ao mesmo tempo, bastante soturnos. Gepeto é o artesão que perde um filho durante a 1ª Guerra Mundial. Solitário, cria um boneco de madeira para fazer-lhe companhia. Mas o boneco não sai exatamente do jeito que ele espera. E eis um Pinóquio desordeiro, subversivo, nada obediente. E, no fundo, libertário, porque num momento em que obedecer é a regra, o negócio, para ele, é transgredir as normas.
Daí ter sido muito boa a ideia de levar a história para a época do fascismo. Por isso aparece logo no filme o chamado “catecismo” de Mussolini: “Credere, obedire, combattere”. Crer, obedecer, combater. Acreditar sem qualquer sombra de dúvida no líder. Obedecer sempre ao superior hierárquico, em todas as situações. Estar pronto a combater o inimigo, a dar a vida pela pátria. O fascismo é uma proposta de militarização da existência humana que age através dos tempos. O de Mussolini foi apenas seu capítulo inicial.
Mas Pinóquio é o avesso de todo esse entulho autoritário. Por isso atraiu Del Toro. Numa época em que todos se comportam como marionetes, a marionete se comporta como um ser humano. Essa inversão é a beleza maior deste Pinóquio em tom sombrio e politizado por essa escolha de situá-lo num dos períodos de autoritarismo do século 20 e que conduziu ao morticínio da 2ª Guerra Mundial.
Essa camada política não anula outras. Pinóquio, como se sabe, mesmo nas versões mais edulcoradas tem elementos que mexem fundo no inconsciente de todos nós. Deve a isso sua longa sobrevivência na história da literatura e o contínuo fascínio que exerce sobre o cinema. Está disponível na Netflix.