Com seu autobiográfico Os Fabelmans, em cartaz e concorrendo a sete estatuetas na cerimônia do Oscar dia 12 de março, Steven Spielberg chega aos 76 anos na condição de mestre do cinema. Essa denominação não deixa de ser surpreendente. Ao longo de sua carreira, Spielberg em geral foi bem de público, nem sempre de crítica. Mas algo parece estar sendo revisado. Fabelmans é capa da revista Cahiers du Cinéma de fevereiro e também foi matéria principal do diário Libération de 22 de fevereiro – foto de capa e quatro páginas internas. Foi homenageado com o Urso de Ouro pelo conjunto da obra no recém-encerrado Festival de Cinema de Berlim, um dos três maiores do mundo.
Ou seja, nessa etapa de maturidade, sua obra coloca-se em revisão e, talvez, em processo de reinterpretação. Na esteira desse processo, o Centro Cultural Banco do Brasil promove uma ampla retrospectiva de Spielberg, com 31 longas que serão apresentados de hoje a 27 de março, e no Cinesesc de 2 a 8 de março. A obra também será objeto de análise e debate de especialistas, que poderão ser acompanhados pelo público. Vista em seu conjunto, a trajetória de Spielberg apresenta várias facetas, que podem ser tidas como contraditórias ou talvez complementares.
Encurralado (1972) é o longa-metragem de estreia, produção modesta, feita na origem para a TV, mas que mostra o talento do jovem cineasta em manter a tensão usando recursos mínimos. O “duelo” (título original: ‘Duel’) se dá entre os motoristas de um carro e um caminhão que se desentendem na estrada. A violência latente na sociedade norte-americana explode nesse singular duelo de forças díspares.
Naquele tempo, Spielberg fazia parte da chamada “nova Hollywood”, movimento jovem que vinha renovar a velha indústria do cinema. Seus companheiros de estrada – Martin Scorsese, Arthur Penn, Francis Ford Coppola, Robert Altman e outros, traziam temas e histórias ousados, novos atores e atrizes, filmagem ágil e, comparativamente, mais barata. Essa postura vinha na onda da contestação dos anos 1960 e, supostamente, reataria o diálogo entre a indústria cinematográfica e a juventude rebelde, que sentia-se estranha ao cinema convencional.
Depois de Encurralado, Spielberg faria Louca Escapada (1974), obra em linha com o ideário programático não escrito da nova Hollywood. Durante visita ao marido em uma prisão, mulher o convence a escapar para se reunirem ao filho, que fora adotado por outro casal. Com seu ritmo vertiginoso, foi muito bem de crítica e mal de público.
No entanto, Spielberg logo descobriria sua veia nata para o blockbuster com Tubarão (1975), imenso sucesso mundial e até hoje referencial do gênero. Que gênero? Ora, o terror, mas não de ordem sobrenatural. Uma pequena comunidade é assolada por um monstro marinho e tem dificuldades para se defender. Esse gênero tem suas regras próprias. Como sempre, as autoridades preferem fechar os olhos para o problema, pois temem prejuízo para o turismo. Alguns abnegados resolvem ir à luta em benefício da comunidade. Combatem em nome da justiça e do triunfo dos bons, mitos quase intocáveis do cinema norte-americano e, portanto, do próprio Spielberg, um dos seus próceres.
Numa época de efeitos digitais cada vez mais perfeitos ou mirabolantes (como os de Avatar), o monstro de borracha de Tubarão pode parecer meio tosco hoje em dia. Mas a concepção rigorosa e manejo talentoso do suspense continuam em pé.
Essa percepção do sucesso se confirmaria em filmes posteriores, como Encontros Imediatos do Terceiro Grau (1977) e E.T.- O Extraterrestre (1981), primeiros diálogos com a ficção científica, porém recheados com menções à família e o retorno ao lar (remissão ao O Mágico de Oz), tudo regado por doses generosas de sentimentalismo. Esnobado pela crítica, Spielberg encontra o caminho do público. E o faz também com a vitoriosa série de aventuras Indiana Jones. O primeiro, O Caçador da Arca Perdida, é de 1981.
Crítico respeitado, e autor de um referencial dicionário de diretores de cinema (traduzido e adaptado para o Brasil pela L&PM), Jean Tulard assim se refere a essa fase do cineasta: “Olhando de perto, essas obras não são nem inovadoras quanto ao roteiro…nem convincentes quanto à interpretação e altamente pueris, sobretudo na moral que veiculam”.
Infantilidade: essa era a acusação geral feita aos filmes de sucesso de Spielberg. Mas talvez haja aí um ardil, uma estratégia de comunicação bem-sucedida com a porção infantil presente no público de cinema e que ajudaria a explicar o sucesso das obras. De certa forma, esse apelo ao núcleo pueril da personalidade, está descrito no autobiográfico Os Fabelmans, não presente na Mostra mas ainda em cartaz nos cinemas.
Também é verdade que Spielberg tenta responder a essas críticas com filmes “adultos”, como a saga antirracista A Cor Púrpura (1985), Amistad (1997), uma história de revolta de escravizados, e obras de guerra como O Império do Sol (1987) e O Resgate do Soldado Ryen (1998). Em A Lista de Schindler (1993) arrisca-se a pisar no campo minado do Holocausto através da história verídica de um salvador de judeus, e dá-se bem, levando os Oscars de melhor filme e direção.
Ao mesmo tempo, corteja a juvenília com a continuação da série Indiana Jones e filmes como Hook – a Volta do Capitão Gancho (1991), ambientado no universo de Peter Pan, e O Parque dos Dinossauros (1993), este já nascido com a vocação da franquia. Nela, os répteis pré-históricos são recriados por amostras de DNA e, como sempre acontece quando se mexe com a Natureza, tudo desanda e sai de controle.
Também é interessante notar a continuação mais recente do diálogo de Spielberg com a ficção científica. Em particular, no caso de AI – Inteligência Artificial (2001), um projeto herdado de Stanley Kubrick. Nessa história de andróides, um garotinho artificial desenvolve a capacidade da emoção e liga-se à mãe adotiva pelo sentimento do amor. É um diálogo com a história de Pinóquio, no qual o boneco de madeira, criado por Gepeto, busca tornar-se um menino de carne e osso. Mais perturbador, Minority Report: A Nova Lei (2002) fala da polícia que procura antecipar-se aos crimes e impedir que aconteçam. Problema ético: como condenar pessoas por aquilo que ainda não fizeram?
De volta à realidade, Spielberg realiza alguns dos seus melhores filmes recentes. Em O Terminal (2004) debate a condição de apátrida com a história do homem confinado a um aeroporto ao não poder retornar ao seu país de origem e nem entrar nos Estados Unidos. Munique (2005) estuda a retaliação do governo isralense depois que terroristas mataram atletas judeus nas Olimpíadas de 1972. The Post – A Guerra Secreta (2017), sobre a revelação de segredos governamentais pelo Washington Post, é um belo filme sobre a missão ética do jornalismo.
Por fim, destaque à parte merece Lincoln (2012), biografia surpreendentemente adulta do presidente responsável pela abolição da escravatura nos Estados Unidos e dos meios pouco ortodoxos que usou para alcançá-la. Quem diria? Steven Spielberg, tantas vezes acusado de idealismo infantil desconectado da realidade, curva-se aqui ao pragmatismo político no qual fins justificam os meios.
Com tantas contradições ao longo da obra, na maturidade só poderia mesmo vir o auto-reflexivo Os Fabelmans, obra complexa de aparência simples, da qual não foram ainda tiradas todas as consequências.
Cinco indicações:
Tubarão: apesar de suas limitações, vistas pelo olhar de hoje, continua um ícone do cinema de suspense. Mostra o ataque de um tubarão branco a banhistas de um balneário, a pequena cidade de Amity, na Nova Inglaterra.
E.T. O Extraterrestre. Um tanto adocicado, tem no entanto cenas memoráveis (como o passeio de bicicleta tendo a Lua como fundo) na história do garotinho que faz amizade com um ser alienígena que tenta voltar para casa.
O Resgate do Soldado Ryan. Filme de guerra bem sólido, tem um começo vertiginoso com o desembarque dos soldados na Normandia, no curso da Segunda Guerra Mundial. Tom Hanks, como o capitão John H. Miller, será responsável pela defesa do mito militar de que “ninguém será deixado para trás” ao buscar um soldado desaparecido no campo de batalha.
Prenda-me se For Capaz. Spielberg, quem diria, traçando a biografia de um impostor. Frank Abagnale Jr. (Leonardo DiCaprio), adotando diversas personalidades falsas, vive de aplicar golpes nos incautos, além de se tornar o maior ladrão de bancos dos Estados Unidos com apenas 17 anos. Um filme ágil e bem-humorado.
Ponte dos Espiões. Filme da Guerra Fria. Um piloto norte-americano e um espião soviético estão detidos nos países inimigos e um advogado traça toda a estratégia para que sejam libertados, um em troca do outro. Drama político tenso e irresistível.