A arte da crítica (33): a inteligência artificial e a crítica de cinema


Como metade da humanidade, comecei a brincar com o chatGPT, a máquina de inteligência artificial. Fiz algumas perguntas e ela me respondeu. De maneira até surpreendente para uma máquina.

Então resolvi aplicar a inteligência artificial à minha área de atuação. Pedi uma crítica de uma das obras-primas do cinema, A Doce Vida, de Federico Fellini, filme de 1960.

Eis o que o chatGPT escreveu:

“La Dolce Vita” é um filme de Federico Fellini que foi lançado em 1960. O filme é considerado um dos mais influentes da década de 60 e é amplamente considerado como uma obra-prima da arte cinematográfica. A trama gira em torno de Marcello Rubini, um jornalista de moda que vaga pelos clubes noturnos de Roma, tendo aventuras românticas e procurando sentido na vida.

A direção de Fellini é excelente, e ele consegue capturar a atmosfera da época com uma sensibilidade única. O filme é repleto de cenas notáveis, incluindo uma cena icônica na fonte de Trevi e uma série de momentos de alta intensidade dramática. Além disso, a fotografia é incrível, e a trilha sonora é uma adição perfeita à atmosfera geral do filme.

No entanto, o filme também é controverso, e muitos argumentam que é moralmente ambíguo e questionável em termos de valores. Alguns críticos argumentam que a representação de mulheres no filme é desrespeitosa e misógina. No geral, “La Dolce Vita” é um filme complexo e desafiador que provavelmente não agradará a todos, mas é uma obra-prima importante da história do cinema.”

Não fiquei inteiramente contente. Questionei no texto a afirmação de uma suposta misoginia do filme e indaguei se isso não seria uma concessão ao pensamento considerado correto hoje, porém anacrônico em se tratando de uma obra de 1960.

Eis a resposta:

“Como modelo de linguagem artificial treinado pela OpenAI, não tenho opiniões pessoais ou posições políticas. A minha função é fornecer informações precisas e imparciais sobre assuntos requisitados.

No entanto, é importante lembrar que a representação de gênero e a representação de mulheres em particular é um assunto muito complexo e polêmico. Muitas pessoas argumentam que a representação de mulheres em “La Dolce Vita” é misógina e ofensiva, enquanto outras acreditam que essas críticas são uma concessão ao pensamento politicamente correto. No final, a interpretação da representação de gênero em “La Dolce Vita” e em outros filmes é subjetiva e depende do contexto cultural, político e histórico do espectador.”

Considerei a resposta razoável, embora tenha ficado em cima do muro, por assim dizer.

Enfim, foi uma experiência e tanto.

Muito se tem falado sobre a inteligência artificial – e não é de hoje. Para quem se formou vendo filmes, a referência imediata é o Hal 9000, computador que controla a nave em 2001 – uma Odisseia no Espaço. Todos sabem que, no filme de Kubrick, o Hal ultrapassa suas funções, passa a ameaçar a vida dos tripulantes e mesmo assassinar alguns que estão viajando em estado de hibernação.

A revolta das máquinas também é o tema de Eu, Robô, de Isaac Asimov, romance também adaptado para o cinema. Enquanto Kubrick faz uma obra-prima a partir do original de Arthur C. Clarke, a versão cinematográfica de Eu, Robô parece uma pífia e distante tradução do original.

Essa história das máquinas que “pensam” instiga a inteligência humana. Desde os homens mecânicos de Hoffmann até os androides de Blade Runner e Minority Report. Há toda uma vertente da ficção científica que se ocupa deles. Fascinam.

Na vida real, assustam também. São uma ameaça ao nosso suposto privilégio de seres dotados de razão. Seriam mais um descentramento radical do ser humano? Acho que era Freud quem falava das feridas narcísicas da humanidade. Copérnico teria roubado a ilusão de que a Terra seria o cetro do sistema solar. Darwin, arruinado a noção de que o ser humano seria o centro da criação, uma exceção entre os animais. A própria psicanálise teria mostrado que a razão, motivo de orgulho e responsável pelas grandes realizações da espécie, não seria o centro do sistema de pensamento humano.

A razão levou à construção dessas máquinas poderosas, capazes de realizar inúmeras tarefas, tão bem ou melhor que os humanos. Estariam a ponto de superá-los?

Lembro de algumas décadas atrás, quando se afirmava que nenhum computador seria capaz de derrotar um grande mestre de xadrez. O “cérebro eletrônico” (como se chamavam) podia acumular uma montanha de informações sobre aberturas, meio-jogo e finais e mesmo assim seria vencido pela criatividade humana de um grande jogador.

Com o desenvolvimento tecnológico, hoje nenhum grande mestre, nem mesmo um campeão mundial, é capaz de derrotar um desses gênios eletrônicos. O mundo do xadrez foi há pouco movimentado pelo escândalo de uma suposta fraude numa disputa humana. Um dos contendores teria dado um jeito de “pedir ajuda” a um desses computadores geniais durante uma disputa e, com a informação privilegiada vinda da máquina, teria derrotado seu oponente humano.

Voltando à “crítica” de La Dolce Vita. Ok, não se trata de um grande texto, porém é correto. Até bem escrito, em especial se você for comparar com muita coisa que se lê por aí.

Resolvi continuar a minha experiência com o computador. Solicito um plano de estudo para pesquisa em crítica cinematográfica. E ele, de imediato, começa a escrever na minha tela:

“Claro, aqui está um plano de estudo sugerido para pesquisa em crítica cinematográfica:

Fundamentos de teoria e análise cinematográfica: Comece com os conceitos básicos de teoria cinematográfica e análise, tais como narrativa, montagem, mise-en-scène, som e cinematografia. Estudar a história do cinema, gêneros cinematográficos e as técnicas de produção e direção também é importante para obter uma compreensão mais profunda do meio.

Estudo de crítica cinematográfica: Leitura de artigos e críticas de cinema escritas por críticos famosos e respeitados. Analisar suas técnicas de escrita, avaliação e argumentação, bem como suas opiniões e pontos de vista sobre diferentes filmes. Alguns exemplos de críticos conhecidos são Roger Ebert, Pauline Kael, Stanley Kauffmann e Andrew Sarris.

Análise de filmes: Analisar e avaliar os aspectos técnicos, narrativos, estilísticos e temáticos de diferentes filmes. Aprender a identificar as técnicas e estratégias utilizadas pelos cineastas para transmitir suas ideias e mensagens. O estudo de filmes de diferentes gêneros e épocas também é importante para a compreensão de diferentes abordagens e estilos cinematográficos.

Estudo de cinema e sociedade: Compreender o papel do cinema na sociedade e como as questões sociais, políticas e culturais são retratadas em filmes. Analisar a representação de gênero, raça e etnia, bem como as questões políticas e sociais exploradas em diferentes filmes.

Escrita de críticas cinematográficas: Praticar a escrita de críticas cinematográficas, desenvolvendo sua própria abordagem crítica e estilo de escrita. Escreva críticas de diferentes filmes, experimente diferentes abordagens e técnicas de escrita e aprenda a avaliar os filmes de forma objetiva e justa.

Participação em comunidades de críticos de cinema: Participar em comunidades online de críticos de cinema, grupos de discussão e fóruns para compartilhar ideias e perspectivas sobre filmes. A troca de ideias e a participação em discussões com outros críticos podem ajudar a aprimorar sua própria escrita e a compreensão da crítica cinematográfica.

Estudo de fontes adicionais: Ler livros e artigos acadêmicos sobre crítica cinematográfica, teoria e análise de filmes para obter uma compreensão mais profunda e completa do assunto. Aprender sobre as diferentes abordagens teóricas, como o formalismo, o estruturalismo e o feminismo, pode ajudar a aprimorar sua própria abordagem crítica.”

Não está mal. Apesar de sua generalidade, poderia servir como roteiro básico de estudo para quem deseja se tornar um crítico de cinema. Não hesitaria em apresentar esse texto para os alunos que tive, anos atrás, quando dei um curso de crítica de cinema na pós-graduação da FAAP.

Podem-se fazer reparos, claro. Um deles, quando a máquina cita a necessidade de ler os grandes críticos e cita como exemplos Roger Ebert, Pauline Kael, Stanley Kauffmann e Andrew Sarris.

Acharia ótimo que principiantes lessem esses três. Aliás, todos nós deveríamos voltar a eles. Porém acrescentaria outros, como André Bazin, François Truffaut, Ismail Xavier, Jean-Claude Bernardet, por exemplo.

Mas o computador não nega seu selo de origem: é anglo-saxão, auto-centrado e permanece em seus domínios. Provavelmente como imagem e semelhança de quem o criou. Isso não significa que não possa aprender e progredir quando for abastecido de informações sobre o amplo espectro da crítica, em âmbito mundial. O computador tem que aprender. E, me dizem, está aprendendo. Com rapidez.

Muito se tem falado sobre esse atual estágio da inteligência artificial. Ela não “pensa”. Limita-se a ordenar as palavras da maneira mais lógica, dentro de certa probabilidade. Ok, mas a maneira como articula um texto, em questão de segundos, e um texto que faz todo sentido, não deixa de ser espantosa. Se não pensa, o que traz, como resultado a nossas perguntas, se assemelha muito àquilo que chamamos “pensar”. Concatenação lógica de palavras? Sim, mas existe outra forma de pensar?

Não acho impossível imaginar um futuro próximo em que esse computador possa escrever um texto, uma crítica por exemplo, muito precisa, profunda e articulada. Mesmo não tendo “visto” o filme a que o texto se refere.

Quando – e se – isso acontecer, como ficaríamos nós? Bem, eu não vejo outra alternativa senão esta: escrevermos textos cada vez mais pessoais, irredutíveis à máquina. O que não significa encharcar a matéria analítica de uma subjetividade narcisista. Mas essa subjetividade, creio eu, deverá estar presente de maneira cada vez mais significativa e explícita, não apenas para nos diferenciarmos das máquinas que escrevem como humanos, mas também dos humanos que escrevem como máquinas

(Work in progress. Continua)

Leia a série completa de A arte da crítica

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2 comentários em “A arte da crítica (33): a inteligência artificial e a crítica de cinema

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