Em uma passagem de Flores Raras, filme de Bruno Barreto, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto) espanta-se com a passividade do povo brasileiro diante da derrubada do governo de João Goulart. Corre o dia 1º de abril de 1964, Bishop olha pela janela do apartamento e vê um grupo de rapazes disputando animada pelada na praia. Em outra cena, falando em uma recepção, ela relembra o trauma coletivo com o assassinato do presidente nos Estados Unidos. Aqui, ninguém parecia ligar para nada. Evoca a dificuldade de entender o país onde está morando e cita Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes.” Quase como acusação, diz: “Com o golpe militar, vocês acabaram de perder a liberdade e o que foram fazer? Jogar futebol na praia. Eu vi isso”.
Esta é apenas uma menção política em obra que retrata o romance entre as duas mulheres independentes num país conservador, a despeito da fama de paraíso tropical. Ficcional, o trecho mantém relação tensa com a realidade. No filme, Lota, amiga de Carlos Lacerda e interessada em aprovar seu projeto do Parque do Flamengo, revolta-se contra o governo popular de João Goulart e torce pelo golpe de Estado, que tem em seu amigo Lacerda um dos conspiradores civis mais ativos.
Este é o filme.
A realidade é bem diferente. Em carta de 4 de abril de 1964 ao seu amigo, o poeta Robert Lowell, Bishop comenta: “Bem, foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva – tudo terminado em menos de 48 horas”. Prossegue, dando depoimento sobre o ambiente da capital no pós-golpe. Diz que ela e Lota haviam se preparado para o pior, mas tudo se acalmara rapidamente. Apesar do golpe “limpo”, ela admite que estão ocorrendo milhares de prisões no país.
Em outra carta, de 13 de abril, confidencia a Lowell que “A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo teria sido uma mera ‘deposição’, e não uma ‘revolução’ – muitos homens de Goulart continuariam lá no Congresso, todos os comunistas ricos iriam fugir (como alguns fugiram, é claro) e os pobres e ignorantes seriam entregues à sua sorte.”
De todo modo, apesar da atitude compreensiva com a “revolução”, Bishop sente-se deprimida e cogita deixar o Brasil, o que faria em breve, para desespero de Lota.
O depoimento, assimilado a um filme que trata basicamente de relações amorosas, vale como registro do olhar estrangeiro sobre aquele transe político, e no momento exato em que ele está ocorrendo. O filme não deixa de ser uma visão retrospectiva (é de 2013) e um tanto distorcida, como mostra o divórcio entre o que diz a personagem de ficção e o que escreve a Elizabeth Bishop real nas cartas ao seu conterrâneo. (Para a troca de cartas entre Elizabeth Bishop e Robert Lowell, veja artigo de Octávio Frias Filho na Piaui: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/foi-uma-revolucao-rapida-e-bonita/)
Já as reações do cinema no pós-golpe vieram rápido em vista da defasagem habitual entre a celeridade da História em tempos de ruptura e a mais lenta transformação do seu material em obra ficcional.
Já no ano seguinte, 1965, aparecia O Desafio, de Paulo César Saraceni. Através da história do jornalista de esquerda (Vianninha) que mantém caso com uma burguesa casada (Isabella), Saraceni recria o clima de desespero, mas também de resistência que se armava no imediato pós-golpe. Em cenas documentais, o filme contém longa sequência do show Opinião, com a então novata Maria Bethânia cantando Carcará, canção de protesto de João do Vale, aquela do “pega, mata e come”.
Dois anos depois, em 1967, é lançada a obra-prima do período, Terra em Transe, de Glauber Rocha. Em linguagem alegórica, pretende não apenas dar início ao processo de “digestão” do golpe, como examinar algumas estruturas da sociedade brasileira que faziam possível este e outros atentados à democracia, tornando irrisória a resistência de setores progressistas da sociedade. Cinquenta e seis anos passados, Terra em Transe é ainda a mais radical radiografia da nossa “alma social”, dos fatores profundos que nos condenam, até hoje, a ser como somos. Meetings políticos transformados em cenas carnavalescas, o populismo caricato, a conspiração das elites, o vezo autoritário das camadas médias, o tortuoso relacionamento entre intelectuais e povo – tudo está lá, na genial intuição cinematográfica de Glauber. Rever Terra em Transe é contemplar o Brasil da sua época, e também o país de hoje.
Após 1968, com o fechamento completo do regime depois da edição do AI-5, o cinema, como outras artes, refugia-se de vez no domínio da alegoria como forma de driblar a censura. Em tempos de trevas, as luzes remanescentes piscam às escondidas. Desse modo, um diretor consagrado como Nelson Pereira dos Santos falava do Brasil em filmes sinuosos como Fome de Amor (1968), Azyllo Muito Louco (1970) e Como era Gostoso meu Francês (1971). Joaquim Pedro de Andrade, em Os Inconfidentes (1972), usa os Autos da Devassa da conjuração mineira como roteiro, falando menos de Tiradentes e da Minas do Brasil Colônia que das lutas pela liberdade no país do seu próprio tempo, dominado pelos generais. Esses deslocamentos, temporais e formais, serviam para iludir os censores, mas também como acenos cifrados à resistência política.
Com a proximidade da redemocratização, o tom começa a mudar. Ao transcrever para a tela o livro de Graciliano Ramos, o mesmo Nelson Pereira dos Santos faz do seu Memórias do Cárcere (1984) um hino duro da resistência e da busca da liberdade na alvorada da redemocratização. Entre a ditadura do Estado Novo, que havia aprisionado Graciliano na Ilha Grande, e a dos generais de 1964 não havia mais que um passo.
Nessa mesma época também vem à luz aquele que é o filme-símbolo dessa resistência – Cabra Marcado para Morrer (1964-1984), de Eduardo Coutinho. Iniciado como ficção, foi interrompido pelo golpe. Tentaram destruir os negativos e perseguiram os participantes do filme. Vinte anos depois as filmagens foram retomadas, agora sob a forma de documentário que buscava pelas pessoas dispersas pelo golpe. Pelo reencontro de Dona Elizabeth Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira (1918-1962), herói do primeiro filme, Coutinho simboliza o país que, após longo intervalo de trevas, reata o fio da História e pode, talvez, seguir adiante.
Outro marco da época de transição foi Prá Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, cuja história denuncia a tortura, agora em modo naturalista e sem disfarces. Produzido no crepúsculo da ditadura, ainda sofreu pressões da censura. A história é a do homem (Reginaldo Faria) preso por engano pelos órgãos de repressão e torturado nos porões do regime enquanto o país vive a euforia da Copa de 1970 no México.
Em tom mais sutil, Nunca Fomos Tão Felizes (1984), de Murilo Salles, conta a história de relacionamento entre pai e filho, tendo por fundo a luta armada de resistência ao regime. A trama é baseada em conto de João Gilberto Noll.
Nesse umbral aberto pela redemocratização, começam a surgir filmes que representam aspirações libertárias tanto dos diretores como do público. Por sua qualidade, e também pelo sucesso de público, deve ser lembrado Jango, de Silvio Tendler (1984), que reconstitui o governo e a conspiração contra João Goulart.
Com a normalização democrática, a produção se intensifica. A memória da resistência armada ao regime, do exílio e da tortura, ganha muitos títulos, em documentário e em ficção. Para enumerar, saem filmes tão variados como O que é Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, Lamarca (1994) e Zuzu Angel (2006), ambos de Sérgio Rezende, Cabra Cega (2004), de Toni Venturi, Ação entre Amigos (1998), de Beto Brant, Em Busca de Yara(2013), de Flávio Frederico, Batismo de Sangue (2007), de Helvécio Ratton, 70 (2013) e Galeria F. (2016), ambos de Emilia Silveira, entre outros. Recordam ícones da guerrilha (Carlos Lamarca, Carlos Marighella, Iara Iavelberg), ou ações da luta armada, como o sequestro de embaixadores para resgate de prisioneiros políticos (O que é Isso companheiro?, baseado em livro de Fernando Gabeira, e Hércules 56 (2007), de Sílvio Da-Rin.
Houve cineastas que utilizaram o período como matéria de ficção, como Ação entre Amigos, de Beto Brant, ou Cabra Cega, de Toni Venturi. A memória da tortura também se fez presente com Que Bom te Ver Viva (1989), de Lúcia Murat, Corte Seco (2013), de Renato Tapajós, e Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, este baseado em memórias de Frei Betto.
Esse conjunto de filmes, no entanto, ainda deve ser considerado incipiente, dada a importância do período para a História brasileira. Salvo raras exceções, investe num memorialismo que não toca questões políticas mais espinhosas e nem busca entender as estruturas e conjunturas que tornaram tais fatos possíveis.
Uma exceção a ser destacada é Cidadão Boilesen (2009), doc de Chaim Litewski que ilumina a trajetória do financiador dos aparelhos de repressão em São Paulo, o empresário Henning Albert Boilesen. Tema espinhoso, o da colaboração de parte do empresariado com as masmorras da ditadura, raramente enfrentado pelo cinema brasileiro. Boilesen veio ao Brasil, fez fortuna e tornou-se presidente do grupo Ultragás. Estabeleceu e financiou a caixinha de empresários que arrecadava recursos para a Oban (Operação Bandeirantes), o grupo de extermínio dos dissidentes do regime. Foi morto por militantes de esquerda, por ironia na mesma Alameda Casabranca onde Marighella morrera dois anos antes.
A exceção de Cidadão Boilesen ilustra a tese do crítico Jean-Claude Bernardet sobre as dificuldades do cinema brasileiro em enfrentar algumas esferas de poder da sociedade brasileira, notadamente as forças armadas, os sistemas financeiro e empresarial, e a grande mídia, em especial no relacionamento entre essas instâncias e a ditadura.
Produções recentes abordaram a ditadura de modo original. Há uma vertente significativa sobre a busca do aspecto pessoal, do drama familiar envolvido na luta política. São os casos dos documentários A Grande Viagem (2011), de Lúcia Murat, e Diário de uma Busca (2011), de Flávia Castro, e mesmo Marighella (2012), de Isa Grinspum Ferraz. Através deles, o conteúdo político passa pela sensibilidade pessoal.
Em A Longa Viagem, a diretora, que foi militante e presa política, conta a história da família, em particular a de seu irmão, que para não se envolver na luta foi mandado para o exterior e viajou no mundo e nas drogas.
Diário de uma Busca segue a tentativa de esclarecer o mistério da morte do ativista Celso Afonso Gay de Castro, pai da diretora, em circunstâncias estranhas. Celso, que vivera no exílio com a família, havia voltado para o Brasil com a anistia e apareceu morto no apartamento de um ex-oficial nazista em Porto Alegre.
O belo documentário Marighella filtra a carreira do guerrilheiro da ALN pelo olhar de Isa, sua sobrinha, para quem “o homem mais procurado do Brasil” era apenas um tio simpático e exótico. Quando a menina lhe perguntava o endereço, o militante, na impossibilidade de fornecê-lo, apenas cantarolava os versos de Caymmi: “Eu não tenho onde morar/É por isso que eu moro na areia”.
Através dessas recordações infantis emerge outra faceta do homem que procurou revolucionar o país através da luta armada e morreu numa emboscada do delegado Sérgio Paranhos Fleury na Alameda Casa Branca, em 1969.
Ugo Giorgetti, em Cara ou Coroa (2012), entra por caminho que, salvo engano, ainda não havia sido abordado – o da “pequena” resistência. A resistência dos, vamos dizer assim, coadjuvantes da luta armada e que, nem por isso, arriscavam menos o pescoço do que aqueles que pegavam em armas para valer. Ainda está para ser avaliado o que esse ativismo em tom menor contribuiu para a redemocratização. Consistia em pequenos atos que, somados, desgastavam o regime e serviam de apoio à luta direta. O panfleto passado adiante, a contribuição em dinheiro, levar um pacote de lá para cá – tudo isso implicava em risco e era indispensável para o funcionamento das organizações. O ato mais temerário dos simpatizantes provavelmente era esconder, por uma noite ou duas, perseguidos pela polícia política. É o que fazem estes personagens de Giorgetti, pessoas comuns, com ideias de esquerda, que tocavam suas vidas, mas, em paralelo, prestavam esse serviço às organizações armadas de oposição ao regime.
Tata Amaral, com Hoje (2011), filme vencedor do Festival de Brasília, evoca o Brasil das reparações e da Comissão da Verdade. O país redemocratizado, com seus desafios presentes e futuros, mas ainda assim volta e meia vê-se ameaçado pelos fantasmas do passado, como comprovamos depois com a eleição de um ex-militar de extrema-direita para a presidência.
Vera, a personagem de Denise Fraga, compra apartamento com o dinheiro da indenização recebida pelo desaparecimento do marido, militante de esquerda. Para superar a posição de luto, Vera precisa se mover. E, para fazê-lo, necessita exorcizar seus fantasmas, evocados, no filme, da maneira mais poética.
De certa forma, Hoje se apresenta como símbolo de nova postura em relação à herança dos anos de chumbo. Em quatro letras, essa pequena palavra fala do peso do tempo presente, que só adquire sentido quando o passado não é mais reprimido e passa a ser integrado ao fluxo da História. Sem falar diretamente nela, é um filme sobre a Comissão da Verdade e sua tremenda responsabilidade não apenas com o passado, mas com o futuro do País.
Era o que se pensava em 2011, ano de lançamento de Hoje. Pouco tempo depois, viriam as jornadas de junho de 2013, a Lava-Jato, as manifestações de direita pelas ruas do país, o impechment-golpe de Dilma Rousseff, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro. Vários filmes flagraram esse processo, entre eles Alvorada, de Lô Politi e Anna Muylaert (2021), e Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, que chegou a concorrer ao Oscar.
Nos últimos anos, novas produções abordaram os tempos da ditadura por outros ângulos. No tocante Torre das Donzelas (2018), Susanna Lira evoca a prisão de mulheres envolvidas no combate ao regime militar, entre elas a ex-presidente Dilma. Em Os Arrependidos (2021), Ricardo Calil e Armando Antenore tocam em tema polêmico, o dos militantes presos que, coagidos, renegaram seu envolvimento com a luta armada em “confissões” diante das câmeras de TV. Marighella (2019), filme de ficção dirigido por Wagner Moura e interpretado por Seu Jorge, baseado na biografia escrita por Mário Magalhães, chegou às telas depois de ter o lançamento boicotado durante muito tempo pelas autoridades federais. Mesmo assim, transformou-se num dos grandes sucessos recentes do cinema brasileiro, levando cerca de 400 mil pessoas às salas de cinema.
Há que se destacar também O Dia que Durou 21 Anos (2013), de Camilo Tavares, pela amplitude de abordagem e, em especial, pelo destaque da participação do governo dos Estados Unidos na desestabilização e derrubada de Jango. Processo hoje certificado por comprometedoras gravações em áudio feitas na Casa Branca e liberadas em anos recentes.
Retratos de Identificação (2014), de Anita Leandro, ocupa nicho à parte ao trabalhar com restos de arquivos dos órgãos de repressão para retraçar a trajetória de militantes detidos e torturados barbaramente naquele período. Como diz a cineasta, a função do filme é colocar o período em perspectiva; interessa a todos os que desejam conhecer a nossa História, inclusive em seus aspectos mais sombrios, para não repeti-la, conforme a frase famosa de Santayana.
No entanto, apesar da experiência passada, em 2018 o País elegeu alguém de extrema-direita para comandá-lo por quatro anos. Durante esse período, a democracia foi corroída por dentro enquanto se cozinhava novo golpe para fechar o ciclo aberto com a redemocratização de 1985 e a Constituição de 1988. O país evitou o pior ao não conceder um segundo mandato ao ex-capitão golpista. No entanto, o ambiente tóxico, com a radicalização política, o discurso do ódio e as fake news, continua vivo e presente, como observamos todos os dias e cujos efeitos ficaram evidenciados no dia 8 de janeiro, com os ataques terroristas em Brasília.
Esperamos por filmes que ousem retratar essa instabilidade contínua da sociedade brasileira. Mas não devemos nos iludir. Tudo é complexo demais, um processo cheio de nuances e contradições. Seria preciso outro Glauber Rocha para produzir a nova metáfora desta terra em transe permanente.
(Artigo publicado no Jornal da Ciência, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Colaboração para o dossiê Mentira e Ditadura).