O Homem Cordial no país do culto à violência


Escrevi sobre Homem Cordial, de Iberê de Carvalho, quando passou na Mostra de São Paulo. Entrou agora em cartaz.

O Homem Cordial toma o capítulo clássico do Brasil, de Sérgio Buarque, mas apenas para efeito de ironia. A ideia é mostrar como a “cordialidade”, no sentido mais popular, anda longe do ethos brasileiro contemporâneo. Sérgio Buarque usava o termo para explicar porque somos movidos mais pelas paixões que pelas relações formais. Parecia que estava dizendo que o brasileiro era bonzinho. Ele mesmo falava em “lhaneza do trato”, uma bonita expressão. Mas o diretor Iberê Carvalho, toma a ideia ao pé da letra para aplicá-la a uma história que tem como protagonista o ex-Titã Paulo Miklos.

Miklos é Aurélio Sá, roqueiro dos anos 1980 que caiu no esquecimento. Seu empresário tenta uma rentrée no mercado de shows. Mas os planos desandam quando Aurélio interfere na tentativa de linchamento de um menor suspeito de haver furtado um celular. Ele toma a defesa do menino, que consegue fugir. Aurélio é filmado por um desses grupos protofascistas que hoje proliferam no Brasil e as imagens viralizam na rede. O vídeo é turbinado pelo fato de um policial ter sido morto ao tentar perseguir o suposto ladrão. Aurélio ganha fama de “protetor de bandidos” e vê sua vida transformada em inferno, como se fosse cúmplice do assassino do policial. No nada cordial e muito menos inteligente Brasil de hoje basta você defender os direitos humanos para ganhar o rótulo de protetor de bandidos.

Miklos é um ator potente, como sabe todo aquele que o segue desde sua estreia em O Invasor, de Beto Brant. A odisseia do seu personagem pela periferia paulistana parece às vezes o clássico Depois de Horas, de Martin Scorsese. O Homem Cordial tem essa referência. Mas a pegada do filme é mais humanista. Leva à história a denúncia da utilização das redes para demonizar opositores e também a violência policial, cujo alvo preferencial, como sabem todos, são indivíduos pobres e pretos.

A longa noite de loucuras de Aurélio abre outra vertente para este filme de muitas camadas. Ao procurar pelo menino desaparecido, ele retoma o contato com um antigo parceiro de grupo, o rapper Thaíde. Este abriu um bar na periferia, que acolhe jovens talentos negros, inclusive uma praticante de Slam. Ela convida Aurélio para um desafio e este fica calado diante dos versos eloquentes da moça, que falam da discriminação racial. É como uma revelação, à qual ele não pode e não deve responder – o momento é de calar e ouvir o que o outro tem a dizer. É o que mais nos falta no momento presente de polarização, em que cada um fala consigo mesmo ou com o grupo que pensa igual.

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