Em maio de 2023 o Cinesesc organizou uma mostra chamada O Amor ao Cinema. O motivo era a queda da frequência às salas de cinema (em especial as de rua) no pós-pandemia da COVID-19. Um fenômeno, diga-se, que atingia não apenas o Brasil mas a maior parte dos países.
Além da projeção de filmes aludindo ao amor do público pela “sétima arte” (como Cinema Paradiso e A noite americana, por exemplo), debateu-se o assunto. E chegou-se a uma conclusão provisória de que o cinema só terá salvação se, de alguma forma, for preservada a mística da experiência coletiva na sala escura. A sessão vista numa tela grande em companhia dos nossos semelhantes. Experiência compartilhada, portanto. Aquela mesma, criada em 1895 pelos irmãos Lumière no Boulevard des Capucines, em Paris.
O cinema é, desde então e de fato, ligado à emoção, aos afetos,aos sentimentos.
Daí derivam as reações de amor ou ódio ao crítico, conforme ele fale ou escreva bem ou mal de um filme que a pessoa ama.
Com o detalhe de que o amor não precisa se voltar apenas para obras-primas ou grandes filmes; manifesta-se, também, em relação a filmes médios, ou mesmo ruins, mas que toquem alguma coisa em particular em nosso eu profundo. Em nosso inconsciente, talvez. É o caso dos “guilty pleasures”. Os prazeres culpados, inconfessáveis. O amor a filmes desprezados pelo consenso crítico, na eventualidade de que este exista, mas que, para seus fãs, são parte do seu universo afetivo.
O fato de nos apaixonamos por determinado filme pode soar como paradoxal. Às vezes nem precisa ser um filme inteiro, em seu conjunto, mas apenas uma sequência ou mesmo uma única cena. Por exemplo, aquela pequena sequência de O Conformista, com a vendedora de flores e os filhos cantando a Internacional. Ou o final de Oito e Meio ou Cidadão Kane. São alguns dos meus momentos mágicos do cinema, aqui apontados em outro capítulo (Capítulo 23: As Cenas Mágicas).
Esse é um aspecto. O outro vai além do cinema e tem a ver com a ancestral necessidade da espécie de ouvir (ler ou assistir) a narrativa de histórias. Míticas, reais, ficcionais, edificantes, mal-comportadas. Pouco importa.
Esse antigo fascínio pela narrativa foi decifrado por Horácio em uma breve frase: “De te fabula narratur”. A fábula (história) fala de ti. (Leia mais no capítulo 23, dedicado a este tema). A história fala de mim. É algo íntimo, particular. Falar mal dessa história é dizer mal da minha própria narrativa de vida.
Os títulos de alguns livros de autores famosos referem-se a essa relação de afeto com o cinema. Jean Douchet deu à sua coletânea de artigos o título de L’art d’aimer. A arte de amar. Éric Rohmer chamou a sua de Le goût de la beauté. O gosto da beleza.
Emoção, amor, beleza. Eis algumas palavras, com razão ou não, associadas às artes, ao cinema em particular. O cinema engloba esses termos de valor positivo, embora não se reduza a eles. É inevitável, quando falamos do cinema, falarmos também dessas sensações agradáveis que ele produz em nós. Ou que ficaram marcadas em nossa memória afetiva.
Esse tecido de emoções não exclui a necessidade da racionalidade na crítica ou na análise fílmica. Antes, a exige.
Douchet, em seu livro, diz que a sua crítica está ligada à sensibilidade. À sua sensibilidade. Isto é, à maneira como sente os filmes e a ele reage. Pensamos, nesse momento, no crítico como espectador. Ele assiste ao filme como espectador e, apenas depois, vai pensar sobre ele, elaborar e colocar por escrito aquilo que pensa.
Porém, mais adiante, Douchet lembra de Bazin, como tendo assentado as bases do nosso métier, por exemplo no artigo William Wyler ou o jansenista da mise-en-scène. No texto, Bazin analisa dois filmes de Wyler, Pérfida (com Bette Davis) e Os Melhores Anos das Nossas Vidas. A análise é bastante formal (mas jamais formalista). A forma não é um fetiche. Vê, por exemplo, o efeito da profundidade de campo em alguns planos sobre a narrativa. Ou, pelo contrário, como um plano de fundo um tanto borrado contribui para a dramaticidade da cena. No caso, a recusa da personagem de Bette Davis em socorrer o marido cardíaco, que sofre um ataque e precisa desesperadamente do seu remédio. Bette fica em primeiro plano e o marido em segundo, tentando subir a escada para alcançar o medicamento que pode lhe salvar a vida.
A questão, para a crítica, consiste em compreender ou analisar seu “objeto”, sem descarná-lo. Nesse sentido, Bazin, evocado por Douchet, é um caso exemplar.
Apesar do rigor com que observa, medita e escreve, André Bazin define a função da crítica desse modo: “A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que os leem, o impacto da obra de arte.”
Simples assim. Mas o problema persiste.
Fernão Pessoa Ramos, na apresentação de Lendo Imagens do Cinema, chama a crítica jornalística de “impressionista”. Em artigo famoso sobre o crítico Wilson Martins, Flora Sussekind fala de “velho modelo de crítica – como afirmação personalista do gosto” (em A crítica como papel de bala). Porém, Fernão Ramos não evita o problema da análise de filmes e sua tendência ao “descritivismo”. O “impressionista” parte do efeito causado pelo filme em sua sensibilidade de crítico. Já o “analista” esmiúça plano a plano até que a parte ou mesmo o conjunto caibam numa teoria estabelecida a priori.
Daí que um livro tão cerradamente analítico como Lendo Imagens do Cinema (Laurent Jullier e Michel Marie) se justifique no seu título “paradoxal” ao ligar o cinema ao prazer de ver. “Lendo Imagens é, simplesmente, prolongar esse prazer do espetáculo, analisando, desvendando, olhando com uma lupa o que acabou de passar – 24 ou 25 vezes por segundo.” A ressonância de Bazin nesta frase é indiscutível.
Quanto ao cinema, parece que ficamos entre o amor e o rigor. Talvez, idealmente, seja possível manter os dois. Essa, a esperança do crítico.
(Work in progress. Continua)
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