Em noite de ‘Grande Sertão’, começa o Cine PE, em Recife


RECIFE – Começou ontem o Cine PE, com a exibição de Grande Sertão, de Guel Arraes, que entra também em todo o Brasil com cerca de 300 cópias. O festival pernambucano começou em 1997 e está em sua 28ª edição.

Equipe de Grande Sertão na apresentação do filme[/caption]

A abertura foi grandiosa, com o Cinema do Teatro do Parque lotado para assistir à saga de Riobaldo (Caio Blat) e Diadorim (Luisa Arraes) em Grande Sertão, filme dirigido por Guel Arraes e adaptado da obra-prima de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. A governadora do Estado, Raquel Lyra, e o prefeito da cidade, João Campos, subiram ao palco para prestar tributo à homenageada do ano, a atriz Tânia Alves (de Paraíba, Mulher Macho, entre outros filmes). Tânia recebeu a estatueta (Calunga) das mãos do Maestro Spok.

Em presença do elenco e equipe, Grande Sertão foi muito aplaudido pelo público. Bem, já escrevi duas páginas para o Estado sobre o filme e não quero ficar me repetindo. Digo apenas que, ao vê-lo pela segunda vez, para mim o impacto apenas cresceu.

Mas entendo que seja polêmico, em especial entre puristas da obra literária ou aqueles que vêem no logo da Globo Filmes o signo do Cão. Deixemos isso para lá e que o filme siga seu caminho.

Apenas algumas observações posteriores. Em entrevista aqui no Recife, Guel Arraes respondeu à recorrente pergunta sobre influências. São várias, segundo ele, do cinema oriental a Baz Luhrmann. Mas destacou uma em particular: Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, esse clássico do Cinema Novo. Vê em Glauber uma influência rosiana e, assim, os filmes confluiriam, a uma distância de quase 60 anos – Deus e o Diabo é de 1964.

Bem, pode ser. Deus e o Diabo é também uma soma de influências, que vão do cordel nordestino ao Euclides da Cunha de Os Sertões e provavelmente o Guimarães Rosa de Grande Sertão: Veredas. Talvez haja dados biográficos sobre isso, mas agora não dá para consultá-los.

Em todo caso, em Deus e o Diabo, pode-se fazer uma leitura que se impõe no contexto dos anos 1960. A trajetória de Manuel (Geraldo Del Rey) passa por etapas, que se poderia chamar de dialéticas: a reação à injustiça do fazendeiro, a busca mística através do beato, o cangaço e, por fim, a corrida em direção ao mar, síntese que indicaria a opção revolucionária, após negadas as etapas anteriores – a reação individual à injustiça, o misticismo, a violência pura do cangaço. É uma leitura. Entre outras, claro.

Na do Grande Sertão, de 2024, a meu ver, a grande sacada é que o sertão migrou para as cidades, para as favelas, e tudo se tornou uma coisa só, a anomia de uma sociedade sujeita a injustiças históricas e a uma tenaz indiferença das elites, com a cumplicidade interesseira da classe média. Com as camadas geológicas de desigualdade acumuladas, têm-se o ambiente distópico de uma guerra civil, que antes se dizia não declarada, e hoje se expõe à vista de todos, por negacionista que sejam.

A outra coisa é a tensão sexual das personagens, que ganha corpo na androginia de Diadorim e na atração que exerce sobre Riobaldo. Atração recíproca, aliás.

Dou aqui um depoimento pessoal. Na primeira vez em que li o romance eu não sabia de nada. Fui a ele em estado de pureza. Apesar de algumas indicações do escritor, mas que ficam evidentes apenas depois que se conhece a história, a revelação final é surpreendente. Um soco na cara. Ou melhor, uma epifania.

Na edição em que li, havia um recado de Guimarães Rosa para quem havia terminado o livro: que não revelassem aos futuros leitores aquele desfecho para estragar o prazer da descoberta dos futuros leitores.

Ora, depois de leituras e releituras dessa que se coloca como entre as maiores obras-primas da nossa literatura e, sobretudo, das adaptações para cinema e TV, tudo isso acabou virando um segredo de Polichinelo. Ou seja, um “segredo” conhecido por todos. Ou quase todos. A cena da “revelação” em Grande Sertão é muito bem feita, aproveitando a luz do amanhecer para expor na tela o tal segredo de Diadorim. Causará o mesmo efeito nos espectadores de hoje que aquele buscado por Rosa nos anos 1950? – o romance foi publicado em 1956. E o recado de Guimarães Rosa, pedindo discrição aos leitores desapareceu. Não consta das edições que tenho do Grande Sertão Veredas: duas em papel e uma em e-book.

Dito isso, a mostra competitiva do Cine PE 2024 começa hoje para valer. À noite, no Cinema do Teatro do Parque, será exibido o primeiro programa das mostras: nada menos que três curtas e dois longas-metragens – o documentário Geografia Afetiva, de Mari Moraga, e a ficção No Caminho Encontrei o Vento, de Antonio Fargoni.

O que posso dizer de antemão sobre eles? Nada. Não os conheço – nem as obras nem os cineastas – e essa é a melhor notícia para um jornalista que cobre um festival. Ver reagir ao que há de novo por aí. Exercício da crítica sem rede de proteção.

Apenas a título de curiosidade, seguem os filmes concorrentes, que começarei a ver a partir de hoje:

Competição de longas-metragens (Troféu Calunga)

. “Memórias de um Esclerosado” (RS), de Thaís Fernandes e Rafael Corrêa
. “Cordel do Amor Sem Fim” (SP), de Daniel Alvim
. “Invisível” (RJ), de Carolina Vilela e Rodrigo Hinrichsen
. “Geografia Afetiva” (SP), de Mari Moraga
. “No Caminho Encontrei o Vento” (PE), de Antonio Fargoni

Competição de curtas-metragens brasileiros (Troféu Calunga)

. “Hoje Eu Só Volto Amanhã”, de Diego Lacerda (PE, anim.)
. “Dentro de Mim”, de Dayane Teles (AL, doc). “O Silêncio Elementar”, de Mariana de Melo (MG, doc)
. “Cacica – A Força da Mulher Xavante”, de Jade Rainho (MT, doc)
. “Resistência”, de Juraci Júnior (RO, doc)
. “Vermelho Oliva”, de Nina Tedesco (doc, RJ). “Dependências”, de Luisa Arraes (RJ, fic)
. “A Chuva Não me Viu Passar”, de Leonardo Gatti (SC, fic)
. “Jogo de Classe”, de Quico Meirelles (SP, fic)
. “Sempre o Mesmo”, de João Folharini (SP, fic)
. “Guaracy”, de Eliete Della Violla e Daniel Bruson (SP, anim.)
. “Zagêro”, de Victor Di Marco (RS, fic)
. “Solange Não Veio Hoje”, de Hilda L. Pontes e Klaus Hastenreiter (BA, fic)
. “Sertão, América”, de Marcelo Ilha Bordin (ES. doc)
. “Flores da Macambira”, de Crianças e Adolescentes da Comunidade Macambira (ES, anim.)

Competição de longas-metragens pernambucanos (Troféu Calunga)

. “Nova Aurora”, de Vitor Jiménez (anim.)

. “Das Águas”, de Adalberto Oliveira e Tiago M. Rêgo (doc)

. “Descarrego”, de Joana Claude (doc)

. “Moagem”, de Odília Nunes (doc)

. “Chão”, de Philippe Wolney (fic)

. “Emocionado”, de Pedro Melo (fic)

. “Mãe”, de Natália Tavares (fic)

. “Náufrago”, de Vitória Vasconcelos (fic)

Mostra Inquietações (não-competitiva)
Composta com nove curtas-metragens
Exibições no Cinema do Porto-Cinema da Fundação (Bairro do Recife, dias 8 e 9 de junho, às 14h, sessões são gratuitas)

. “Utopia Muda” (SP), de Júlio Matos

. “Era uma Noite de São João” (PB), de Bruna Velden

. “Estação Janga-Lua (O Segundo Mundo do Rádio)” (PE), de Rui Mendonça

. “Dinho” (PE), de Leo Tabosa

. “Adam” (PR), de Ana Catarina

. “Cida Tem Duas Sílabas” (SP), de Giovana Castellari

. “Lagrimar” (RN), de Paula Vanina

. “Seu Adauto” (PE), de Edvaldo Florêncio dos Santos

. “Destino Brasília” (PB), de Kalyne Almeida, Leandro Cunha e Sandro Alves de França

Mostra Infantil
Dia 6, às 14h, no Cinema do Teatro do Parque (para alunos inscritos junto à Secretaria de Educação da Prefeitura do Recife (alunos da rede pública de ensino)

. “Coração de Fogo” , de Laurent Zeitoun e Theodore Ty (animação, 92’)

Um comentário em “Em noite de ‘Grande Sertão’, começa o Cine PE, em Recife

  1. Olá Oricchio: gostaria muito de ler sua crítica sobre Grande Sertão publicada no Estadão. Não consigo acessar por não querer ser assinante daquilo, por razões ideológicas. Vc poderia publicar no seu Blog? Abs

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