Vendo, mais uma vez, uma dessas manifestação dos apoiadores do presidente, com suas camisas da CBF e bandeiras nacionais, foi inevitável lembrar da frase famosa de Samuel Johnson: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.
Não há dúvidas. Esse patriotismo tosco, violento e redutor está presente nas ideologias fascistas em qualquer de suas formas. Não poderia faltar ao fascismo à brasileira proposto por Bolsonaro e seu grupo. Supõe uma “ideia” de fechamento a tudo que lhe é estranho, aos “inimigos”, aos “estrangeiros”, aos conspiradores internos, esposa a convicção abstrusa de bastar-se a si mesmo: tudo o que é diferente, é inimigo.
Não que toda ideia de pátria seja estúpida como esta que vemos pela ruas neste triste tempo. Há um ideal nacionalista interessante pelo valor de identificação com a terra onde se nasceu, da qual se fala a língua e em cuja cultura nos formamos.
A essa pátria desejamos todo o bem. Sentimo-nos na obrigação de defendê-la quando atacada e não permitimos que suas riquezas sejam entregues ou dilapidadas. Mas jamais nos fechamos em suas fronteiras – geográficas ou simbólicas. Amamos sua cultura, sem desprezar a dos outros. Pelo contrário, vamos à cultura alheia para enriquecer a nossa própria. Mantemos o nosso ponto de identificação, mas nos abrimos para o Outro, nessa troca porosa de enriquecimento mútuo. Alguém já disse que a cultura é a única fortuna que cresce quando partilhada.
Somos todos diferentes, mas a família humana é uma só, como sabe todo aquele que viveu no exterior e sentiu saudades de sua terra natal.
Vinícius de Moraes escreveu lindamente:
PÁTRIA MINHA
Barcelona , 1949
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu…
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda…
Não tardo!
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão…
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes."
Essa pátria eu desejo, venero, defendo. Da pátria bolsonarista, quero distância.
Na coluna de Ancelmo Gois (O Globo, 6/5/2020), Francisco Bosco (filho de João) escreveu sobre esse nacionalismo tosco e seu contrário, a dimensão universal da arte popular brasileira: “O Brasil oficial tem sido um país injusto e segregador. Mas há um outro Brasil, o da cultura popular, menos desigual, feito de encontros, porosidades, utopias. Nesse, Caymmi fala para Oxum que, com Silas de Oliveira, está em boa companhia. O céu abraça a terra: o Rio, a Bahia. Enquanto muitos países do mundo sofreram com as pragas do nacionalismo, aqui a nação desejou-se uma comunidade aberta, fundada na mistura. Essa utopia é o mistério brasileiro do planeta. Ela nunca se realizou, mas era o sonho desses que morreram, e de tantos outros que os sobrevivemos. A nação de Bolsonaro, contudo, é outra: é a do nacionalismo, em que alguns se julgam o povo autêntico e esmagam minorias. Tudo em nome de Deus e dos ‘cidadãos de bem’. E assim o nacionalismo vai sufocando a utopia plural da nação brasileira, o melhor sonho que já sonhamos. Acordemos para sonhá-lo novamente.”