Olhar 2024: O drama no campo em O Sol das Mariposas; o sonho dos desvalidos em Rancho da Goiabada. E mais a memória da guerra em Moçambique


Diário crítico (5)

CURITIBA – Foi difícil arrumar ingresso para O Sol das Mariposas, filme local e, portanto, com grande demanda. Acabei comprando o que seria o último ingresso, direto no cinema, com cadeira quase embaixo da tela. Valeu a pena. É um filme sólido, de feitio clássico (não acadêmico), com uma história bem desenvolvida, que se dá em dois tempos.

Numa primeira etapa, quase a totalidade, temos um tempo que se escoa com lentidão, com a monotonia implacável dos personagens interagindo em uma vida em aparência sem esperança. Temos Marta, a dona de uma pequena fazenda de café. O marido, Rodolfo sumiu no mundo há dois anos e não dá notícias. Parece não ter deixado saudades. Marta tem a companhia de Juliana, alguns empregados, poucos animais e muita dor de cabeça.

Estamos em 1975, o agronegócio nascente avança sobre as pequenas propriedades e a lavoura sofre com as frequentes geadas. A de 1975 será a maior de todas. Sabemos de notícias do mundo exterior pelas vozes empoladas dos locutores de rádio. Era tempo também de ditadura, mas não há quase menção direta à esfera política. E nem faz falta, pois as marcas da História estão internalizadas nos personagens.

Tudo se acelera no terço final, quando algumas relações então ocultas emergem e explodem. Junto com elas, o machismo e a solidariedade entre homens para manter o “equilíbrio” conservador das coisas e das relações entre as gentes. Surge também a sororidade. Em tons discretos que marcam o filme, tecido em sutilezas, numa fotografia que transforma a paisagem do norte paranaense em outro personagem do drama. Uma história de espera, em que as passagens do tempo, lentas, são tão significativas quanto as cenas em que tudo se precipita. Direção de Fábio Allon, que também é professor universitário, fotografia apurada de André Senna e elenco afiado com Anidria Stadler, Camila Jorge e Nautilio Portela. O filme está na competitiva brasileira.

Outro concorrente da competitiva brasileira foi uma grata surpresa – Rancho da Goiabada, de Guilherme Martins.

Como sugere o título, o longa segue o roteiro da música famosa de João Bosco & Aldir Blanc. Fala, portanto, dos desvalidos da vida, dos sonhos e angústias do subproletariado, cada vez mais exposto à precarização nesta etapa do capitalismo selvagem.

O dispositivo adotado faz o filme oscilar entre o documentário e a ficção. A ficção: Alex, o protagonista, é interpretado pelo ator Alex Rocha. Ele convive com vários outros personagens – estes todos reais. Cortadores de cana, lavadores de pratos em restaurantes, camelôs, boêmios paulistanos, bêbados, mitômanos da vida cotidiana, etc. O lúmpem, como se se dizia.

Quase sempre vestido com a camisa do craque Mohamed Salah (e muito parecido com ele), Alex se passa muito bem por um dos despossuídos com os quais convive. Nota-se que goza de confiança e camaradagem entre eles, o que os faz dar ótimos depoimentos.

Enfim, é um filme que consegue, de fato, ouvir o que tem a dizer a classe trabalhadora informal, suas aspirações, sua sabedoria dura, tirada direta da experiência, suas esperanças e ceticismos. Um mergulho radical nesse mundo do trabalho tão pouco documentado pelo cinema brasileiro, atualmente preocupado com outras pautas e outro tipo de gente.

Rancho da Goiabada, que tem o longo subtítulo “Pois é meu Camarada, fácil, fácil não é a vida”, dialoga com outros filmes como A opção, as Rosas da Estrada, de Ozualdo Candeias, Iracema, uma Transa Amazônica, de Orlando Senna e Jorge Bodanzky, e talvez, Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans. Filmes “sujos”, pulsantes de vida, generosos com as classes populares.

Completa o programa o moçambicano As Noites Ainda Cheiram a Pólvora, de Inadelso Cossa.

O próprio cineasta visita sua avó em sua aldeia. Entre relatos e encenações, relembram os horrores da guerra civil que assolou o país durante anos e produziu incontáveis mortes e sofrimentos para a população.

A questão, para o cineasta, é prospectar os restos de memória desse tempo e ver o que deles ficou. Numa estilística hierática, que lembra um pouco a de Pedro Costa, astro do cinema autoral português, Cossa conduz sua reflexão em toada lenta, dolorosa como um réquiem, para concluir que o cheiro de pólvora ainda está no ar. Como em tantos outros países, também em Moçambique o tempo não passa e as cicatrizes permanecem, do passado ao presente.

O filme faz parte da competição internacional.

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