Gramado 2019: o voo alto de Bacurau


GRAMADO – Primeiros movimentos no Festival de Gramado, com a estreia nacional (fora de concurso) de Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o filme mais esperado do ano após levar o Prêmio do Júri em Cannes.

A apresentação da equipe no Palácio dos Festivais foi bonita e sóbria, e Kléber pronunciou a frase destinada a se tornar mantra da categoria: “Somos trabalhadores do audiovisual e exigimos respeito!”. A categoria, como se sabe, tem sido hostilizada sistematicamente pelo governo federal, que a elegeu uma de suas inimigas. A fala foi seguida de alguns “Fora, Bolsonoro” vindos da plateia.

No fundo, o filme fala por si, com seu teor político bastante contundente. Bacurau é a cidade sertaneja que, de repente, tem suas comunicações com o mundo cortadas. Não dispõe mais de sinal de celular e nem aparece nos mapas digitais. O que acontece? Você verá na história que entra em breve em cartaz e já tem pré-estreias marcadas em várias cidades.

Adiante-se que Bacurau é um filme coral, de protagonismo dividido entre vários personagens, no qual o elenco interage como uma grande orquestra. Mistura gêneros e fala de vários assuntos, entre os quais a utilização (metafórica talvez) dos países pobres como reserva de caça de países ricos e a exigência de que a população tome para si a responsabilidade de defender-se, com os meios necessários e que dispuser. É implacável com políticos entreguistas e não exclui a violência para responder à violência, direito básico do oprimido.

Bacurau é uma distopia futurista, ambientada em futuro próximo. Joga com referências que vão do mestre do terror John Carpenter à pegada social do Cinema Novo. Alude a um dos clássicos do cinema brasileiro, A Hora e a Vez de Augusto Matraga (de Roberto Santos, inspirada em conto de Guimarães Rosa), importando-lhe parte da trilha sonora, o clássico Réquiem para Matraga, de Geraldo Vandré. A toada, arrepiante na voz de Vandré, é usada em dois momentos cruciais da história.

Inventivo, original, impactante, Bacurau é um filme ao qual ainda voltaremos várias vezes, tantas são suas camadas de compreensão. Múltiplo e afinado em suas significações subjacentes, embora concebido vários anos atrás, e realizado ano passado, ganha macabra atualidade no distópico Brasil de Jair Bolsonaro.

Os enlaces contemporâneos são evidentes. Na entrevista, Sonia Braga, que interpreta uma médica, disse que se inspirara em Marielle Franco para fazer sua personagem. Lutas presentes que se entrelaçam a lutas passadas. Na relação de mortos de Bacurau aparecem vários nomes conhecidos – o da própria Marielle, o de Maria Letícia (mulher do ex-presidente Lula) e o nome final é o de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas assassinado nos anos 1960 – o “cabra marcado para morrer” do documentário de Eduardo Coutinho.

Polissêmico, Bacurau é um filme de múltiplas entradas – e saídas. Não é desprezível para sua compreensão que as armas dos invasores sejam enfrentadas pelas armas vintage de um museu dirigido ao cangaço – referência de resistência, pelo menos na leitura de Eric Hobsbawm sobre os “bandidos sociais” – Lunga é o êmulo da hora de Lampião. Ou que outro dos invasores tenha um fim inusitado, simbolizando, talvez, que o fascismo nunca é liquidado de vez, mas que, enterrado e dado por morto, volta a florescer quando menos se espera. Na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil, em toda parte.

Divertido e sombrio ao mesmo tempo, reconhecível por suas referências e objeto não identificado pela maneira como as mistura, estimulante e inquietante – assim é Bacurau, esse pássaro de voo alto, destinado a habitar nossa imaginação por um bom tempo.

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