-
Meu pai nasceu em 1917. Era um bebê quando a Gripe Espanhola devastou o mundo e matou em toda parte. Inclusive no Brás, bairro ítalo-paulistano onde ele veio ao mundo e morou. Mas os relatos passavam de pai para filho e ele contava desses tempos de peste. E também da Revolução de 1922 (não confundir com a de 32), quando a cidade de São Paulo foi bombardeada e a família teve de se refugiar no interior do Estado.
-
Quais serão nossos relatos sobre essa pandemia, que vai se alastrando e chegando devagar, com aquele timing de inevitabilidade serena que é marca registrada das catástrofes?
-
No dia-a-dia vamos reaprendendo o ofício de existir, que esquecemos em nosso cotidiano corrido. Nos preocupamos com atividades básicas, tais como prover a casa de mantimentos. Ou com a higiene, agora que estamos sem nossas auxiliares domésticas, para usar um eufemismo. Como limpar um piso? Lavar roupa, tirar o pó? Qual a diferença entre limpar um chão de banheiro e o da sala? Vamos retornando aos fundamentos, por assim dizer.
-
Enquanto isso, esperamos que a medicina preserve nossas vidas, como é de sua vocação, mas nem sempre de sua competência.
-
Ontem começou a vacinação contra a gripe, digamos assim, convencional. Saímos, Rô e eu, de carro, em busca da tal vacina. Percorremos vários postos de saúde e em todos nos avisavam que as doses tinham acabado. Não se sabia quando viria novo lote. Se é que viria.Fiquei pensando: com essa infraestrutura de saúde pública, o que acontecerá quando a curva do coronavírus chegar lá em cima? Aliás, melhor nem pensar.
-
Em meio ao medo generalizado, vejo alguns gestos nobres, tais como os que se oferecem para fazer as compras dos mais velhos para que estes não se exponham nas ruas.
-
Porém também vejo sintomas de pânico mal disfarçado, tais como correntes de oração, banais mensagens de autoajuda, frases feitas, etc.
-
Em meio a tudo isso, a politização da pandemia, que me parece inevitável dada a disfuncionalidade do governo, incapaz de encarnar uma vontade nacional de enfrentamento à crise. Nunca a incompetência ficou tão exposta como agora.
-
Ontem, maratonamos Freud, na Netflix. O jovem Sigmund, ainda na fase da hipnose, envolve-se numa trama escabrosa, com direito a uma sociedade secreta que deseja tomar o poder. Envolve-se também com uma sedutora Fleur Salomé, obviamente inspirada na musa da psicanálise Lou Andreas-Salomé. Vou terminar hoje e depois escrevo a respeito.
-
Antes de dormir, um filme já meio antigo de Kiyoshi Kurosawa, Sessão Espírita. História de uma sensitiva, que vê mortos, e de seu marido, envolvidos, ambos, e de maneira involuntária, no sequestro de uma criança. Que filme inquietante, meu Deus!
-
Mas, devo dizer: depois de horas exposto ao visual hipercarregado de Freud, as imagens límpidas de Kurosawa são como um refresco. Limpam a retina.
-
Vamos aprender alguma coisa com esta crise ou, na hipótese de sobrevivermos, voltaremos a ser os idiotas de sempre?