Cine Ceará 2022: Inseparáveis, estudo sobre a memória e o tempo


FORTALEZA – As irmãs gêmeas Isabel e Amélia Cavallini tocavam piano em duo e tiveram um momento de êxito fugaz por volta dos anos 1960. Agora nonagenárias, vivem de suas lembranças no pequeno apartamento onde moram em Buenos Aires. Um imóvel atulhado de objetos recolhidos ao longo da vida, bonecas, fotos e um magnífico, porém decadente, piano de cauda Steinway instalado na sala. Elas são as personagens desse belo documentário assinado pela diretora argentina Maria Alvarez.

Maria diz que as conheceu por acaso. Viu duas senhorinhas muito velhas comendo um lanche no McDonald ‘s. O inusitado chamou sua atenção. Tirou uma foto e guardou-a consigo. Um dia encontrou as duas na rua e foi conversar com elas. Ficou sabendo do passado artístico delas, que viviam sozinhas e juntas, desde sempre.

Achou que cabiam na trilogia “involuntária” que fazia. Os dois primeiros docs são Las Cinephilas e El Tiempo Perdido. O primeiro, sobre mulheres que se reúnem para assistir a filmes nos cinemas de Buenos Aires. O segundo, um grupo de velhos aficionados de Proust, que se reúne para debater Em Busca do Tempo Perdido, catedral literária do escritor francês.

De certa forma, como observei para a diretora no debate, o filme sobre as irmãs pianistas era também uma espécie busca do tempo perdido. O piano seria a madeleine da dupla e seu fluxo de memória se concentra em poucos elementos. Uma temporada passada em Cleveland, nos Estados Unidos, com uma bolsa de estudos, onde fizeram uma série de apresentações e foram saudadas como grandes pianistas vindas da América do Sul. Outra, o elogio do compositor Carlos Guastavino que, ao ouvir a interpretação das Cavallini de sua peça Las Ninas, disse que elas haviam atingido uma compreensão inusitada da profundidade da obra.

O título original do doc é Las Cercanas, as próximas. Muito próximas, na verdade. Parecem às vezes um velho casal, junto há muito tempo, em que o afeto se mescla a picuinhas. Fora isso, o que se sabe sobre a vida afetiva das irmãs? Pouco. Quase nada. Uma delas lembra que a irmã chegou a ficar noiva, mas não se casou para não separar o duo pianístico. “Ficou sem o marido e sem o piano”, diz, de maneira irônica.

E por que a carreira foi breve? Quando estavam nos Estados Unidos, alguém as avisou para não voltarem a “este país” – a Argentina. Era 1962, era de Perón. Voltaram e a carreira acabou. Mas o motivo não fica claro. Havia um concerto marcado. Porém uma das irmãs não se sentia “concentrada” para tocar. A apresentação foi cancelada e a carreira artística acabou.

Não existem gravações comerciais das irmãs Cavallini, apenas um CD doméstico que a diretora usa no filme. Há também cenas breves de um filmete em 8mm que as mostra em Cleveland, jovens, sorridentes e bonitas. Assim como lindas e vestidas como divas de Hollywood estão as duas no grande retrato que emoldura a sala, ao lado do piano. Muito difícil reconstituir essas vidas tão próximas.

Mas, no fundo, o filme não é uma tentativa de cinebiografia, de reconstituição factual, mas um estudo sobre o depósito cumulativo da memória. Em especial em pessoas que viveram muito e que, como as irmãs, concentram o passado evocado em raros momentos de êxito. Ou naqueles em que simplesmente foram felizes. Um filme sobre o tempo, o implacável tempo, que leva as coisas e as gentes. Um velho piano sendo desmontado e removido para restauro resume tudo num desfecho epifânico. Não precisamos mais perguntar nada porque já entendemos tudo.

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