Cine Ceará 2022: O Acidente, o acaso e a realidade que ninguém vê


FORTALEZA – O Acidente, de Bruno Carboni, começa com a ciclista Joana (Carol Martins) pedalando pelo trânsito pesado de Porto Alegre. Uma motorista lhe dá uma cortada, ela vai tirar satisfações, o carro avança sobre ela…Eis aí o “acidente”. Quer dizer, não é acidente, porque houve intenção da motorista (é uma mulher, vivida por Gabriela Greco) de agredir a ciclista com seu automóvel.

Joana está grávida e espera o bebê junto de sua companheira. O “acidente” a deixa desconcertada, a ponto de não conseguir fazer a tradução simultânea de que estava incumbida quando tudo ocorreu. Deve perder o emprego.

Enfim, acidentes acontecem de maneira imprevista e excluem a intencionalidade, o que não é o caso. Joana não consegue se decidir se processa a motorista ou não. Para complicar, caiu um vídeo na internet, feito pelo próprio filho da motorista e mostrando o desespero da ciclista, agarrada ao carro que a arrasta. E, como complicação sozinha é bobagem, um dia aparece na casa de Joana um militar que se apresenta como ex-marido da tal motorista. Eles disputam a guarda do filho. Se Joana testemunhar o comportamento agressivo da motorista, o marido poderá obter a guarda do garoto.

Isso é apenas o começo. Não quero dar spoilers e nem cansá-los com descrições. Apenas digo que outras camadas são acrescentadas e aumentam a complexidade da trama – em especial a da personagem principal. Parece um roteiro muito trabalhado e, quando isso acontece, não é raro que pareça um tanto artificial, mecânico. A vida é mais imprevisível. Mas a arte (a narrativa) é implacável. Precisa ter sentido interno, verossimilhança, sob pena de perder o espectador, esse ser hoje raro, de atenção dispersa e fugidia.

Fora isso, o filme é muito bem feito, boa filmagem, em registro naturalista. Talvez por isso, a estranheza de algumas partes não encontre contrapartida na forma adotada. Cria-se uma espécie dissonância cognitiva à medida que as coisas vão acontecendo e você não consegue muito ver a sua lógica. Esse tipo de dissonância não parece ser funcional para o efeito da obra sobre o espectador.

O filme tem qualidades, ainda mais quando se pensa que é a primeira direção de um profissional que já tem carreira formada como montador.

Não lhe falta ambição, no bom sentido, isto é, de ir além do óbvio. Além das questões de relacionamentos pessoais, alude ao mal-estar que tomou conta do país nos últimos anos. Brigas de trânsito são uma forma de expressão quase privilegiada dessa guerra de todos contra todos incentivada por quem deveria garantir a paz entre as pessoas. Questões de gênero também afloram, ainda que de maneira mais superficial. O poder do acaso, que poderia ser potencializado numa trama desse tipo, fica meio de viés.

Por outro lado, me pareceu bastante inventiva a maneira como o garoto do acidente se revela um videomaker original, filmando cenas em aparência banais mas densas de significados. É um toque criativo do filme e indica os limites da objetividade. Nosso olhar (e nossas filmagens) de certa forma constroem a realidade e não apenas a registram, como pensam os ingênuos.

3 comentários em “Cine Ceará 2022: O Acidente, o acaso e a realidade que ninguém vê

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